31/05/2010

a sopa de Porumboiu.


Sons de passos, de passarinhos, de pneus no asfalto, de sopa a ser sorvida, de uma passa no cigarro. Respeitar a existência dos Sons e a existência da Vidinha de todos os dias. Depois, muito lá ao fundo, parece que existe uma coisa qualquer que envolve uma investigação policial sobre putos que consomem haxixe. Ainda lá mais para trás, na minha ordem de prioridades, há uma cena (resumida praticamente a um plano fixo de um bom quarto de hora-Porumboiu é um mestre do enquadramento) onde se expõe o poder ditactorial da Palavra sobre a realidade: é a indispensável caução, a senha de entrada para o debate e para o reconhecimento internacional, e ai de quem não a tiver, pois assim o Mourinha (o crítico de cinema preferido de quem não gosta de críticos de cinema) ficava sem massa para fazer os seus resumos sociológicos dos filmes. Politist, adjectiv é o paraíso: estabelece o mínimo dos plots (não vá alguém perder-se), e depois esburaca-o todo com silêncios, gajos encostados a postes durante cinco minutos, perseguições à Lisandro Alonso e a sopa a ser sorvida. Não me canso de falar na sopa. Realizador que dispense um minuto para filmar um tipo a comer uma gamela de sopa terá sempre o meu respeito. E também por causa de não ter o dedo leve no "extract" do Avid ou do Adobe Premiere. O filme de Porumboiu entra directamente na categoria "filmes do caralhão". Aquelas canjas de galinha de pacote do Pingo Doce não são más de todo.

melhor filme de 2010.


...nem que apenas fosse pelo Gabin, pelo putedo, pelo vinho e as côdeas de pão, e pela fragrância a bosta de animal e a feno.

jogos mais ou menos inesquecíveis de certos mundiais-5


Durante dois Mundiais, o de 94 e o de 98, a selecção brasileira era a minha dor no estômago, a minha pedra no sapato, o meu clister. Como Portugal num Mundial era uma miragem (e agora os mais petizes perguntam: era mextre? Protugal nunca ia aus Mundialex? Era, minha querida pita com uma vuvuzela dentro da pachacha com a imagem do Ronaldo na mente e caro pitozito analfabeto divagando com a irmã de vuvuzela enfiada na pássara enquanto pensa no Ronaldo com os biceps escancarados (vergonhosa a promiscuidade sexual desta juventude)), o povo português, ou o que eu conhecia, tratava de apoiar o Brasil. Por causa da língua e das telenovelas e essas coisas. E é óbvio: se dizem branco, eu digo preto, e se dizem cinzento eu digo preto-e-branco. Portanto, o clister brasileiro atingiu o zénite no dia 4 de Julho de 1994, dia de Brasil-EUA dos oitavos de final e dia do aniversário da irmã, com a casa a abarrotar de familiares a puxar pela brasucada, com a notável excepção de duas pessoas. A outra era o meu pai. Algumas coisas sobre ele: considera Fidel Castro a pessoa mais importante do Século XX (e XXI , mesmo em estado comatoso), o Zeca Afonso o melhor cantor português de todos os tempos, cospe grosserias contra os israelitas, se lhe falam do Estaline ele responde "sim, fez algumas coisas mal, mas...", o Stallone e em especial o Rocky IV são a pura encarnação do Mal, arranja sempre alguma obscura justificação para o terrorismo dos símios muçulmanos, e é claro, como consequência lógica da invertebrada cassete vermelha, não suporta o que os E.U.A representam. Deve ser por isso que o filme preferido dele é o Apocalypse Now. Ou isso ou por causa do Brando, o melhor actor de todos os tempos, como contraponto ao Wayne, esse canastrão reaccionário ao serviço do imperialismo. Mas superior ao seu asco contra os amaricanos, era a úlcera cerebral que lhe dava sempre que um país do terceiro mundo (na altura) esquecia as condições em que vivia para entrar num delírio colectivo provocado pela bola. O Brasil tem de perder. O povo brasileiro tem de se esquecer disto, de voltar ás suas vidas, de se insurgir contra os problemas, de exigir melhores condições de vida, de enviar para cá a Bruna Lombardi, etc. Vai daí, nesse Brasil-EUA, viu-o transformado em Roosevelt de bigode, em redneck do cu da Europa, a puxar por jogadores que dois dias antes da competição começar tinham visto o Fuga para a Vitória, do Huston, como introdução ás regras do jogo. O Brad Friedel (não confundir com o Brad Fiedel, que compôs as b.s. dos Terminators do Cameron e do True Lies do Cameron), que é o guarda redes actual e penso que já o era na altura, disse ao Alexis Lalas, o ex-líbris da selecção com visual de roadie dos ZZTOP, o seguinte: posso defender aquela coisa cilíndrica com as mãos? O Brasil jogava muito. Não era o Brasil que os brasileiros ou os românticos da bola desejavam (sambinha e circo), mas era uma equipa de futebol: raramente perdiam a bola, trocavam-na com paciência e depois tinham o Romário e o Bebeto, que marcaria o golo contra os amaricanos, que nesse jogo, segundo me recordo, conseguiram fazer um remate à baliza do Tafarel, através de um pontapé de baliza do Friedel. Como prémio pelo tetra, o Parreira foi despedido. Quanto à minha dor de estômago, lá foi passando, transferida para o pesadelo scolariano, felizmente terminado, dando origem ao período quirosiano, um pesadelo para a maioria dos benfiquistas e dos sportinguistas, logo um motivo mais do que especial para eu apoiar, condicional e mesquinhamente, a "selecção de todos nós". Amanhã compro uma corneta e a bandeira.

Próximo: Argentina- Roménia ou o Raducioiu 'tá cada vez mais parecido com a minha tia Rosa.

25/05/2010

é a degenerescência. é a diluição das fronteiras do bem e do mal. é a "liberdade". é uma moça sem cuecas.



O velho Hawks, no seu modesto pragmatismo, dizia que bastavam umas três cenas boas e nenhumas más para que um filme tivesse qualidade. O filme do Herzog tem duas bastante boas (vide). O resto não é mau. Nem bom. Antes pelo contrário. Pior que o academismo de regra e esquadro de alguns produtos, só mesmo a aura celebratória da "liberdade" e do "caos" que é atribuída a outros. Ó Herzog, volta pós ursos e pá floresta.

24/05/2010

City On Fire.


Andava o Tarantino a aconselhar à arma o À Bout de Soufle aos seus clientes no clube de vídeo, e já o Ringo Lam colocava três sujeitos a apontar revólveres uns aos outros. Andava o Lam a descobrir a maravilhosa ocidentalização de Hong-Kong, e já fazia tijolo há quatrocentos anos o William Shakespeare. Andava o Shakespeare a escolher quais as collants que o tornavam mais elegante e a pedir que o tratassem por "Raquel", e já estava carcomida a carapaça do Aristóteles, que dois mil anos antes revoltava-se contra a paneleirice dos deux-ex-machinas e escrevia, enquanto fazia festas na perna de um menino de sete anos, vamos lá resolver esta merda em três actos. E por aí. Parece que o Tarantino não mencionou a escandalosa influência de City On Fire, obra-prima de Lam, na sua não tão obra-prima de abertura, Reservoir Dogs. Bom, a Taratino perdoa-se tudo, mesmo quando mete o Kurt Russel a ser sovado por três rebarbadas por berbigão. O furioso imediatismo de City On Fire encontra-se logo no título: tudo é explosivo, excessivo, de golpes palacianos movidos a gasolina de montagem ultra-rápida (quero um filme rápido! com explosão!-ler isto com sotaque de nigga de Queluz) e sequências de pancadaria com a indispensável musicalidade. E Chow Yun Fat, reminiscente das pantominas do Vaudeville e precursor do grande Jim Carrey, antes de se tornar na porcaria amestrada de Hollywood. E os sintetizadores dos anos oitenta. Nos EUa, pela mesma altura, o policial estava entregue ao Richard Donner e ao Mel Gibson.

também se aplica ao Von Trier ou ao Moore.

Pela primeira vez em trinta e um anos de mais ou menos vida, assinei uma petição. A favor da libertação de um homem cujo crime, segundo o regime de atrasados mentais-filhos da puta-incultos-teólogos (eufemismo, em islâmico, para assassino)-macacos-grunhadores medievais que o prendeu, é ter tido a ousadia de tencionar fazer um filme. Bem ao estilo Orwelliano. E puta que pariu para quem olha com simpatia para estes regimes simiescos, só porque, coitadinhos, fazem frente aos malvados dos amaricanos imperialistas! Os mártires.

jogos mais ou menos inesquecíveis de certos Mundiais-4


No segundo período do 9º ano, tive sete negativas. Ou sete negas, como se dizia na altura, ou como se diz ainda hoje, não sei, acho que Richelieu ainda maquinava na última vez que falei com um puto de quinze anos. A par do Miguel Ângelo, fui o pior aluno da turma. E dos piores da escola. O Miguel Ângelo era um preto que imitava na perfeição outro imitador preto, o Jones da Police Academy. Uma vez levei-o à minha casa para que ele visse as partes de foda do Once Upon a Time in America. Em 1995 abandonou a escola e ingressou numa banda filarmónica. Vi-o dois anos depois e continuava preto. Espantoso mesmo é que no terceiro período tive zero (0) negativas, ou zero (0) negas. Avisaram-me que se não me metesse ao trabalho não haveria Mundial-94 para ninguém, nem praia para ninguém, nem mamonas da Inês para ninguém. O fim do mundo. Perder o Mundial-94! Fiz-me à vida, obviamente. Ia lá passar ao lado do Mundial dos jogos novamente a torrarem ao Sol (como no México), e do Romário, e do Kostadinov, o melhor jogador do universo em 1994. Um Mundial que começou logo muitíssimo bem antes mesmo do seu começo, com a ausência da Inglaterra, algo que provocou prejuízos avultados nas indústrias da charcutaria, do aviário, da cerveja, do protector solar e no The Sun, que viu reduzidas as suas hipóteses de exportar a página 3. Tendo sido, até hoje, o Mundial de que mais jogos vi e o a que mais atenção prestei, incluindo um Arábia Saudita-Bélgica, nada melhor do que recordar um dos que não vi mas que me fez ser mais gozado do que se o FCP tivesse perdido, nas Antas, com o Cartaxo, o Marialvas ou o Benfica. Nigéria-Bulgária, jogo inaugural de um grupo qualquer. A Bulgária tinha o Kostadinov. A Bulgária era o FCP. Andavam também por lá alguns jogadores um tanto ou quanto talentosos, como o Stoitchkov, o Balakov, o Pandev (outro), o Ivanov (o Lon Chaney da cortina de ferro) mas era o FCP. E jogavam de vermelho, verde e branco, mas era o FCP. E dias antes do jogo já andava eu, pelos corredores da escola, a falar no plural: vamos mandar a pretalhada para casa com quatro no bucho. A confiança era tanta que nem me ralei muito por não ver o jogo, que deu para aí ás duas da manhã, pois no dia a seguir tinha lugar um importantíssimo teste de Educação Visual. De manhã, enquanto enfardava Chocapics ou Estrelitas, ouvia a rádio: O 1º ministro Cavaco Silva anuncia intenção de disparar morteiros a quem, num futuro próximo, fizer algazarra na ponte 25 de Abril, Uma empresa informática norte-americana, Microsoft, apresta-se a lançar no mercado uma cena chamada sistema operativo, No mundial dos Estados Unidos, a Nigéria venceu a Bulgária por 3-0, com os golos de Amuneke, Yekini, Okocha, Amokachi, Finidi e Abacaxi a ditarem o resultado. Devo ter cuspido as estrelitas para a santa cona do assobio. Quando cheguei à escola, apalpei o terreno. Aqueles fardos de palha westernianos ondulavam ao som do assobio ventoso. Lá vinham eles. A cuspirem injúrias e gozações, os benfiquistas. Ainda procurei auxílio consolador num sportinguista, mas qual Pedro, renegou-me três vezes. Felizmente, a partir daí, o FCP só me daria alegrias, até ao jogo com a Alamenha. Quanto à Nigéria, seria afastada nos oitavos de final pelo Roberto Baggio, ou como também era conhecido na altura, "Itália".

Próximo: Brasil-EUA ou god bless the 4th of July.

20/05/2010

travestimos literários e escaravelhos com espadas.



Li o Time Machine, de H.G. Wells, num par de horas. Quando acabei, fui até à casa de banho. Ia cortar o bigode, mas reparei que as gilletes descartáveis do Pingo Doce estavam mais gastas que o cérebro da Miley Cirus. Liguei o pc. Coloquei a sacar Time Machine, a adaptação fílmica. Meia hora depois estava pronto. Uma hora e meia depois estava visto. O livro é um brilhante representante do género travestismo literário: um mcguffin (uma viagem no tempo até ao ano 800.000 e tal, data de estreia do Vale Abraão 2) como combustão para um ideal. Furiosamente político, como todos. O filme é apenas a superfície. A apropriação do mcguffin. A aventurazinha agradável. Visualiza quase na perfeição a ambiência dos decors saída da tola de Wells e acrescenta uma pitada de sal humorístico, mas nada de mais. Este nada de mais já não é mau de todo.

Outro clássico da FC dos idos de sessenta é Quatermass and the Pit. Também com origem livresca. Não li. Preferi visitar as páginas de um Herberto Helder qualquer. Quando cheguei ao segundo verso reparei que já tinham passado oito horas desde que tinha acabado de ler o primeiro. Quatermass and the Pit aborda coisas muito sérias: os primórdios da Humanidade, o metro de Londres e exércitos de escaravelhos hipnotizadores. E efeitos visuais comprados na loja dos chineses. Como não simpatizar com estes filmes que almejam debater questões ambiciosas e que depois os embrulham em pirotecnia de fazer rir um Professsor Medina Carreira? Como não gostar das expressões seríssimas das personagens quando à sua volta ocorrem explosões que parecem mais inofensivas que dois estalidos de duas bombitas de Carnaval? E, por amor de Deus, como não apreciar uma obra onde metade da população de Londres é transformada em papel vegetal? Estreasse hoje e chegaria aos Oscares. Como o District 9.

jogos mais ou menos inesquecíveis de certos Mundiais-3


E se no Itália-90 a Argentina era a escolha da criançada, o equipamento mais desejado para envergar na rua e fazer inveja aos outros era o da Alemanha. Por isto, surgiram contradições sartrianas no dia da final, quando sujeitos com a mannschaft colada ao corpo gritavam a plenos pulmões "rebenta-os em três, Dieguito!". Fundo branco percorrido por três listas na diagonal. Gosto pela estética minimalista? Respeito e homenagem pela reunificação iminente? Nunca cheguei a saber, até porque o gajo que mais o usava, que desgraçadamente não me alembra agora o nome, jamais deu resposta para esse mistério da vida. Em vez disso, mandou-me uma pedra aos cornos, quando uma vez na praia lhe roubei a bola. Anyway, Alemanha-Holanda, oitavos-de-final. Ou Inter de Milão-Milan, se se preferir. Brehme, Matthaus e Klinsmann de um lado. Gullit, Van Basten e Rijkaard (os três melhores do mundo) do outro. Derby europeu de memórias e motivos extra-futebolísticos. Derby local. A Holanda, campeã europeia dois anos antes, chegava até este jogo a jogar à Santa Clara. Tinham trocado um treinador de futebol, Rinus Michels, por um Leo Beenhakker, um tipo que nos anos setenta, provavelmente, terá pertencido a uma banda glam. Eram os favoritos à conquista do ceptro, mas entretanto, na véspera da partida para a Bota, o ex-cantor de Glam deu autorização aos seus jogadores para passarem umas horas divertidas pela zona turística de Amesterdão. No primeiro treino, o Rijkaard perguntou ao Van Basten como é que ele se chamava e tentou trincar a bola. Não espanta, por isso, que tenham levado uma tareia dos rivais, perdão, dos inimigos. Uma tareia futebolística sem apelo nem agravo, como ficou comprovado pelo score (2-1). Eu escrevo tareia, mas não faço ideia se tal tenha acontecido exactamente assim. Estes posts têm apenas um critério: respeitar recordações e impressões fragmentadas de certos jogos e de algumas coisas a eles associados, num certo tempo e espaço. Se aparecer por aqui alguma mentira, que se foda. Já o outro dizia que a lenda era muito mais interessante que a realidade. Por exemplo, neste momento exacto não faço a mínima de quem marcou os golos. Voller? Klinsmann? O Guido Buchwald, que nos tempos livres era o baixista dos Def Leppard? Ou o Wouters, que mais parecia um daqueles rednecks, que passa o tempo na mesa de bilhar e sempre com a bejeca na palma da mão? Estas informações seminais encontram-se à distância de um ou dois cliques. O que não precisa de clique para me informar é a escarra do Rijkard. Em cheio nas trombas do Voller. O Voller também foi expulso, pois ao que parece tinha dito ao Frank, nas barbas do árbitro, que foi pena não vos termos mandado para debaixo de água. Todos. Mulheres, crianças, velhinhos. Putas. Todos. O árbitro tinha um daqueles aparelhos que se usam na ONU, como a Nicole Kidman no The Interpreter, um Pollack menor, mas sempre mais interessante do que um pintelho amarelecido da Campion. A Holanda voltava a falhar nova final mundialista. Já lá vão trinta e dois anos, desde aquele em que o General Vilela via os jogos , na tribuna presidencial, com um contador no regaço, e que o ia informando em tempo real sobre o número de desaparecidos: 30, 40, 456, 7.000, 34.000...A Alemanha faria o Tri. Seria a última vez que teria mais do que quatro jogadores juntos a saber driblar. Klinsmann (51), Brehme (84), Koeman (89).

Próximo. Nigéria- Bulgária ou como ser gozado durante um dia inteiro por algo que não se viu.

14/05/2010

tags: Joana Amaral Dias, punheta.


A Joana Amaral dias, aquando da estreia de Zodiac, questionava, num dos seus blogos, a necessidade e a validade de se fazer um filme que não dava respostas nem conclusões. Eles foram maus. Eu à espera de saber quem era o bandido e nada feito. Isso não se faz. Sou tão boa. Assim, não se recomenda à miss o visionamento de Memories of Murder, a segunda e genial obra de Bong Joon-ho, um tipo que é das melhores coisas que andam por aí à solta. Sem a épica dilatação temporal do filme de Fincher, Memories... contém igualmente aquela obsessão nervosa de personagens e espectador em visualizar um rosto, uma prova do Mal. Mas contrariamente ao procedural sorumbático de Zodiac, Bong abarca a vida: non-sense, suspense magistral (nunca uma punheta teve tanta importância), drama familiar, irrisão e caricatura das convenções americanas do thriller. Confirma-se, já antes de The Host, que Bong domina como poucos a subtil detonação dos alicerces do género sem os destruir por completo. Espanto. Bong John-ho é um mister.

jogos mais ou menos inesquecíveis de certos Mundiais-2


Junho de 1990. Contam-se os dias para as grandes férias. O muro tinha caído há meses, o comunismo de leste desintegrava-se em pó, Saddam preparava uma invasão histórica, e a Vanda, da mesa da frente, começava a desenvolver uns apreciáveis apêndices mamários. Passados uns anos, foi para a Suiça. Há dezasseis anos que não a vejo. Pelo meio chamou-me de paneleiro, só porque eu, todo coninhas, não lhe apalpava o rabo como faziam os outros meninos da turma. Entretanto, havia um Mundial de Futebol na agenda. Itália-90, o da Alemanha sem RFA e/ou RDA, o da revelação de Baggio, o do sexagenário Milla, o das palhaçadas de Higuita e do cometa Totò Schillaci, o do pior escrete de sempre e o do glorioso catenaccio, e não menos importante, o que me fez gastar as parcas semanadas em camiões de cromos Panini, tarefa inútil, pois o número 365, o Santo Graal da colecção, nunca me foi parar às mãos. Ainda me calhou um malote e uma bola. Jogo inaugural em Milão: Argentina, campeã em título, vs Camarões, uma dessas selecções com os seus duzentos Traorés, trezentos Diarras e um Roger Milla. A equipa de Maradona e mais uns quantos encontrava-se num patamar mitológico, sendo a preferida de quase toda a pitalhada. Estabeleciam-se apostas para qual o resultado ao intervalo. 7-0 aos vinte minutos. 6-1 à meia hora, depois do Caniggia ter marcado um autogolo aos três minutos, para dar mais luta. O massacre seria inevitável, contra um grupo de jogadores que tinha como hobby predilecto lutar em pelota com crocodilos esfomeados. Uma questão de minutos. Minutos que foram passando e passando e passando. Maradona a arrastar-se, Caniggia a chupar os dedos lambuzados em coca, Rugeri a coçar a barba, golo dos Camarões. De um gajo chamado Obinbiqui ou Bikiniki ou o caralho. Elevou-se a três metros de altura e cabeceou para galinha monumental do Pumpido. Já tinha assistido a coisas inacreditáveis no futebol, como o Benfica em duas finais da Taça dos Campeões, mas nada superava aquilo. Escandaleira da grossa. Apesar de tudo, a Argentina chegaria à final (depois de mandar para casa o Brasil e eliminar a Itália...em Nápoles), perdendo-a depois para Lothar Matthaus e demais SS. Maradona, logo a seguir, deixaria a carreira de futebol e tornar-se-ia agiota da Camorra. Durante três anos, pelo menos, houve duas pessoas e um urso que juraram a pés e pata juntos que o tinham visto com o nariz despoluído. Foram internados num edifício panóptico. Os Camarões continuariam a surpreender, com um Roger Milla estelar a passar a ferro tudo o que lhe aparecia à frente, um exemplo feliz para o Mantorras. Quando se aguardava a sua tranquila passagem para as meias finais, foram eliminados por uma inesperada Inglaterra, proeza digna de um Benim vencer um Mundial. Terminava aí a aventura dos Traorés, dos Diarras e dos Bikinikis ou Obkizikinis ou o caralho.

Próximo: Alemanha-Holanda ou qué aquilo que acaba de sair da boca do Rijkaard?

11/05/2010

Kiss Me Deadly e Pale Flower: filmes de cinema.



A meio de Kiss Me Deadly, Mike Hammer (Ralph Meeker), no seu descapotável de luxo, entra numa residência de luxo, equipada com frondosos jardins de luxo, piscina de luxo e mulheres de luxo. Mal Hammer abre a porta do carro para sair, aparece do nada uma das tais mulheres de luxo e começa-o a beijar, para seu grande agrado. Se o espectador, à la Last Action Hero, tivesse a oportunidade de entrar no filme e Meeker lhe dissesse que não, isto não é um filme, isto é the real stuff, então esta cena seria o motivo perfeito para lhe partir a argumentação ao meio: então tu entras numa casa e mal abres a porta do carro aparece uma boazona loura que te começa a falar mansinho e a dar beijinhos? Achas isto normal? Um dos vários exemplos de uma obra intoxicada pelo artifício do cinema, suficiente para deixar para terceiro plano as tangentes à realidade e a um "tema" "importante", o que aliás é apanágio do mais onírico (e mais realista?) dos géneros, o noir. As personagens (talvez com excepção da principal) falam e movem-se afectadamente, não há normalidade (a começar no genérico e passando pelos ângulos oblíquos), e no fim o destino do mundo pode-se encontrar nas mãos de uma atrasadinha mental. Abaixo a realidade, se faz favor.

Pale Flower, de Masahiro Shinoda, é mais um dos espécimens de filmes que vivem no cinema. Na linha da pop art desbragada do Seijun Suzuki, também há descapotáveis, japonesas de luxo, muita elegância e grandiosas auto-estradas. E para além do niilismo da reflexão contemporânea sobre a grande cidade e o isolamento que nela se encontra, há o prazer do cinema pelo cinema: exacto, gangsters de óculos escuros com sonhos em slow motion e que se passeiam em descapotáveis com japonesas de luxo por cima de grandiosas auto-estradas. Tudo isto funciona como se Antonioni emigrasse para terras do oriente e tivesse como função fazer a sua versão de filme de género. E por mais diferenças que se possam encontrar entre a obra de Aldrich e Pale Flower, há sempre um elemento em comum: a coexistência pacifica entre grande e piquena cultura. Já Max Monteiro colocava o bacalhau do Barreiros a conviver com Mozart. Outros, como um filho da punheta dinamarquês que eu cá conheço, fazem apenas grande arte com grande cultura musical. Abaixo a realidade, se faz favor.

jogos mais ou menos inesquecíveis de certos Mundiais-1


Inglaterra-Portugal, ou eu já devia estar na cama.

À pergunta "Onde é que você estava no dia 5 de Julho de 1982?", uns responderão "não me lembro, até porque não era nascido", outros "não me lembro, mas acho que estava na praia", alguns "tinha acabado de regressar dos EUA, onde no dia anterior, no meio das festividades, tinha tentado matar o Reagan", aqueloutros " 'tava a ouvir uma K7 dos Spandau Ballet vestido com as plumas da minha mãe", mais outros " 'tava a informar-me com o meu amante sobre o que era aquilo da SIDA, ao mesmo tempo que o enrabava sem camisinha", e uma minoria lembrar-se-à que "estava a assistir à derrota do futebol pelos pés do Paolo Rossi. " E enquanto o Rossi estilhaçava o sambinha brasileiro, eu, provavelmente, dormia de chucha na boca. Ou cagava no penico. Ou cagava no penico de chucha na boca. Ou cagava na cama, a dormir, e com a chucha dentro do penico. E é isto. O mais simbólico acontecimento do ano de graça de 82, relegando para a catacumba da obscuridade acontecimentos menores como a Guerra do Líbano (a do cheiro a carne queimada, segundo o Vasco Câmara, o que não é verdade, e peço já aqui indemnização ao Vasco por me ter dado o trabalho inútil de ter levado para o cinema uma faca, um garfo, uma toalha e uma cerveja Cergal), a estreia de E.T, a chegada de Senhor Pinto à presidência do FCP ou o nascimento de Jessica Biel, e eu sem nada para escrever sobre ele. Uma tragédia. À excepção de me lembrar que, posteriormente, tive uma t-shirt do Naranjito, são estas as minhas não-memórias do primeiro mundial da minha vidinha, o Espanha-82. Quatro anos depois. Mexico 86, Mexico 86, la, la, la...Merece ir preso quem, com a idade mínima de trinta, não se recordar da música deste Mundial, até porque isso significa que na altura já passava o tempo a vestir as plumas da mãe, enquanto ouvia não os Spandau Ballet, mas o The Queen is Dead dos Smiths. O Mundial dos jogos ao Sol. O que elevou um drogado a níveis de idolatria de fazer inveja a um Jesus (os dois). E o do Inglaterra-Portugal, o primeirissimo jogo dos Mundiais de que me lembro (como quem diz. Lembro-me de o estar a ver na tv e da jogada do golo e de uma impressão). Portugal num Mundial: coisa esquisita em 1986. Na ocasião, a percepção que eu tinha da "selecção de todos nós" era proporcional ao meu tamanho: pequenina e coitadinha. Além disso, era uma equipa de carecas ou de bigodeiros, quando não de carecas e bigodeiros, o que não sendo verdade, tinha sido a imagem que dela guardei. Devido à diferença horária, os jogos passavam cá de noite, embora não consiga ter a certeza sobre as horas precisas: dez da noite, meia noite ou uma da manhã é tudo madrugada escura para um puto de sete anos. Na minha ingenuidade e ignorância, pensava na Inglaterra como um adversário temível, capaz de meter medo a um monstro marinho. Ai Cristo ! Ai agora é que eles marcam! Cristo!. Mais tarde vim a saber que era uma equipa formada por um só jogador, Lineker, e dez seres com vagas parecenças a practicantes de um desporto incerto, incluindo o guarda redes Shilton, que terminou a carreira, salvo erro, aos oitenta e dois anos. E se, na altura, o golo de Carlos Manuel a passe de Diamantino pareceu milagre dos três pastoritos, hoje em dia apresenta-se como a ordem natural das coisas; difícil, complicado e vergonhoso será não vencer gajos que se empaturram de bacon, ovos e batatas fritas ao pequeno-almoço. Portugal ganharia aí o seu único jogo na competição. Sucumbiria depois perante o poderoso Marrocos (1-3, com os goleadores marroquinos a tornarem-se, pouco depois, em vendedores de tapetes em Albufeira) e perante a Polónia de Mlynarczyk (0-1). Quanto à Inglaterra, fez o costume: nada.

Acima, foto da equipa que jogou contra os "qué frô?". Em pé, da esquerda pá direita: Frederico, Jaime Magalhães, Oliveira, Álvaro três pés Magalhães, Damas. Em baixo, da esquerda pá direita: Inácio, Jaime Pacheco, Sousa, Gomes, Futre, Carlos Manuel.

Próximo: Argentina-Camarões, ou já lã vão dois minutos de jogo e o Maradona ainda não fez hat-trick.

02/05/2010

cus, caralhos, galos, mamas, cus = três quase obras-primas made in USA.




No auge do caso Padre Frederico, José Vilhena, num dos seus pasquins libertários, tentava obter resposta para uma dúvida pertinente que os oficiais orgãos de comunicação social ainda não tinham esclarecido: afinal, foi o menino que foi ao cu do padre ou foi o padre que foi ao cu do menino? São perguntas destas que fazem mover o mundo, e revelam uma genuína curiosidade pelos acontecimentos da sociedade e que ainda se inserem na nobre tradição do "whodunit" noir. Em Mysterious Skin, embora sem o humor verrinoso de Vilhena, ficamos a saber, em parte, quem foi (de forma pouca ortodoxa, diga-se) ao cu a quem, mas a curiosidade e a ausência de sermão estafado sobre tal traumático tema permanecem, sob um ângulo completamente diferente, é certo, mas permanecem. Não por acaso, as melhores sequências do filme de Araki são as que envolvem o professor e o rapazinho, recortes de um subconsciente infantil, sem julgamentos, sem apologias, sem Daniéis Sampaios e Eduardos Sás, apenas o olhar para algumas coisas do mundo, de frente, que é como muitas das vezes a câmara enquadra as personagens. O trauma está lá, sem dúvida, mas envolto por uma camada melancólica que afasta à chapada a mais óbvia das críticas. Bem haja Araki, e recordando Vilhena, pergunto desinteressadamente se nos recentes casos de pedofilia foi a padralhada que foi ao cu dos meninos ou vice-versa? Perguntar não ofende.

Cockfighter, de Monte Hellman, é um filme banal. Abençoadamente banal. Os diálogos são banais, a fotografia é banal (do banalíssimo Almendros), a moralidade é banal. Até os galos são banais. Não há a sofisticação (aka proeza técnica insípida) que me impingem dia-sim dia-não (literalmente), não existe o desejo de se fazer mais do que se sabe, não há, sequer, estória com sumo aditivo. Em contrapartida, há cheiro a terra e a sangue, um verdadeiro mestrado em 4D (mamã, hoje estreia um novo filme em 3D! Vamos ver, mamã! Vamos! Depois quando chegarmos a casa faço-te um minete, mamã! Vamos! Deixa!) Eram os gloriosos anos setenta. Agora, se me permitem, vou barrar-me com manteiga e vestir as cuecas da minha avó.

A condescendência para com certos filmes (nomeadamente "os de culto) é muito comovente. Como se se estivesse a lidar com um cão sarnento, cheio de pulgas e carraças nas orelhas, coxo, mas muito engraçado. There, there. Vejamos o caso de Faster Pussycat! Kill Kill!. Sim, é uma obra para ver com a unha comprida do dedo mindinho a tirar cera dos ouvidos, com dois pires de tremoços e três grades de mines no sofá, com arroto abundante a acompanhar e insultos às mulheres á fartazana. No caso de ser mulher, veja com um livro da Beauvoir ao seu lado e cuspa grosserias contra os pútridos machos, ao mesmo tempo que reflecte porque é que não tenho um par de tetas assim, para agradar e provocar aos machos, para quando eles me assediarem, eu ter o prazer de os mandar ir bater uma, os pervertidos?. Isto é tudo uma verdade cristalina, mas que não deve iludir o essencial: o filme de Russ Meyer é grande. Grande na magnífica e deliciosa ritualização de cada palavra e na miríade de sentidos que dela advém, grande nos contra-picados anti-verga, grande na majestosidade dos paisagísticos (só batido pelo Ford), grande nos rabos, grande nos decotes. É tudo grande. Não há condescendência que resista a esta grandeza. E ainda: o plus de ter fufas suportáveis, ao contrário das do Death Proof, em cujo filme, infelizmente, só uma metade delas teve o que mereceu.
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