21/06/2010

o bazar da "história do cinema".



Stagecoach é um rico catálogo de memorabilia cinematográfica, um best of das mais belas cenas da história do cinema, desde o zoom mata-cavalos na direcção de Ringo Kid, até à gentil perseguição na cerca, passando por um extraodinário interlúdio onde nada se passa, quando, silenciosamente, a câmara ronda os personagens no interior da carruagem, e que culmina naquela singela e elucidativa troca de olhares entre Trevor e Wayne. Mas o ainda mais impressionante acontece na perseguição dos Apaches ao Homem Civilizado. Como diria mestre Mourinho, em condições normais é a melhor sequência de acção do cinema norte-americano. E em condições anormais também. Ajuda a paisagem, um deserto livre de empecilhos paisagísticos que abafem a clareza da dramaturgia, mas qualquer um dos irmãos Scott seria capaz, com todo o brio, de destruir um filme, mesmo com essa vantagem pelo seu lado. Essa meia dúzia de minutos é um legado de Ford à Humanidade, o de que por mais planos e ângulos que se usem ( e o picado sobre os cavalos? Jasus senhor) o objectivo passa sempre por dar a ver, sem a tentação de ai ai, agora vem aquela parte dos caos, deixa-me ir apanhar parkinson com a minha avó, volto daqui a duas semanas, quando já 'tiver infectado, e depois já posso ser o operador de câmara nesta cena de caos e violência, há que mostrar o caos, há que ser caótico. E também uma prova de que a dimensão temporal não está em linha recta, do passado para o futuro, antes revolvendo-se em diversas amplitudes que escapam à compreensão humana, daí, clara e obviamente, esta sequência ter sido a influência decisiva para as escadas de Odessa de Eisenstein. Não deixemos de notar, no entanto, que Ford também foi beber a outrem, nomeadamente a Cameron do Terminator 2.

eram os anos 80 (2).



É do senso comum que , na infância, existem duas etapas cognitivas: uma de formação e aprendizagem e uma outra em que se começa a ler Dos Passos e Adorno. Assim, para quem tenha nascido em finais de setentas e inícios de oitentas, depois de uma breve (até aos cinco, seis anos, digamos) passagem por narrativas light, como os Transformers, a Heidi, o Verano Azul, o Conan, a A Abelha Maia, ou o Duarte e Companhia, seguiu-se a todo o vapor a entrada nas delícias de Godard, Resnais, Eisenstein, Brakhage, Proust, Foucault e John Cage. Contudo, algum ou outro imbecil decidiu, na transição, permanecer num limbo espiritual, não recuando nem avançando (nm atacando, como diria um jornal desportivo) um milímetro. Foram os anos Bocas, Van Damme, Stallone, Schwarzie, Michael Dudikoff e Karate Kid. Numa iniciativa paralela à programação do senhor António Rodrigues, o autor deste blogue, que gosta de se vestir de mulher ao Domingo, decidiu realizar uma contra-programação, em local e data incertos. Estão todos convidados. Aí vai:

1- Programação integral do O Bocas.
2- Cyborg, de Albert Pyun
3- Red Scorpion, de Joseph Zito
4- Rambo III, Peter MacDonald
5- BloodSport, Newt Arnold (agora todos: Kumite! Kumite! Kumite!))
6- Karate Kid I, II, III, John G. Avildsen
7- Rocky IV, Stallone
8- Best of the Best, Robert Radler
9- Kickboxer, Mark Di Salle / David Worth
10- Red Heat, Walter Hill
11- Commando, Mark L. Lester
12- Lone Wolf Mcquade, Steve Carver
13- Action Jackson, Craig R. Baxley
14- Lock Up, John Flynn
15- The Gods must be Crazy II, Jamie Uys
16- Halloween III, Tommy Lee Wallace
17- American Ninja 2, Sam Firstenberg
18- Streets of Fire, Walter Hill
19- Road House, Rowdy Herrington
20- Murphy's Law, J. Lee Thompson

Após a exibição de cada filme, iremos todos para uma cabana a improvisar o Frágil dos anos 80, onde trataremos de reconstruir a cena do Frágil dos anos 80, isto é, enrabamo-nos uns aos outros enquanto ouvimos Joy Division e Soft Cell e discutimos performance art. Acabada a festa, queixemo-nos dos novos tempos, e derramemos lágrimas de uma insidiosa nostalgia, como está patente neste artigo a pingar um subtil aroma a reaccionarismo por todos os poros. Podem chamar-me Lúcia, enquanto me comem.

eram os anos 80 (1).






É ilusão e ignorância minha, ou no ciclo de cinema "eram os anos 80", da Cinemateca, não há um lugarzinho, nem que seja ao canto, para o John Carpenter? Será que, tal como em relação a Spielberg, a ausência de John deve-se a uma mera escolha pessoal do senhor António Rodrigues, que também não o deverá achar muito interessante, para além de não saber contar histórias, algo que o cinema americano perdeu a capacidade...(bocejo) ? Será que Carpenter encaixa nos extremos do cinema popular e no de autor mais à margem, dois estilos que o senhor Rodrigues queria evitar estarem representados? Será que tudo não passa apenas de um lapso casual, já que o senhor António, em vez de estar a prestar atenção aos autores que deveria seleccionar, estava a cortar cabeças de peixes e de morcegos e a deixar regar o sangue para uma tigela, onde aí juntaria três cebolas e um iogurte Danone, numa poderosíssima conjuração de Spielberg, que mal se materializasse levaria com um barrote nos costados? É obra. Robert Altman? Cum caralho. Vou é ver o resumo da Itália, para adormecer.

jogos mais ou menos inesquecíveis de certos Mundiais-7


Nestes tempos de Planos de Austeridade, chips nos automóveis, comissões de inquérito e restante lixeira para nos foder o bolso, a privacidade e o juízo, ainda é no futebol que se pode encontrar algum alívio humorístico. Como aquele praticado pelas capas dos "jornais desportivos", que de há tempos para cá arranjaram novos termos: agora jogador tal já não está "preso por detalhes" para se transferir para tal clube, não não, agora o clube tal "avança" por jogador tal, e "ataca" jogador tal. Se não "avança", "ataca", e se não "ataca", "avança". E então, logo pela manhã, o Zé Povinho sai apressado da cama, aproveita para derreter a mulher à porrada, porque o café estava frio, e sai para a rua, onde encontra o quiosque do shôr Manel, que lhe diz que hoje o seu clube não avançou nem atacou ninguém, por isso não gaste aqui os seus trocos, guarde-os para comprar pão, que dele bem precisará nos próximos meses. E o Zé lá volta a casa, desgostoso pelo seu clube não ter atacado nem avançado por ninguém, e decide então avançar para e atacar a sua mulher, que mal refeita do enxerto anterior, leva mais um baile de socaria. O outro humor bem interessante tem a ver com algumas previsões pré-Mundial, na qual, imagine-se, alguns analistas projectavam a Inglaterra como uma (senão a) das favoritas a ganhar a taça. Leu bem, caro leitor: a Inglaterra. Aquela equipa de jogadores semi-embriagados, de barriga cheia pelas coxas de frango frito que comem dez minutos antes do jogo começar, de sujeitos que quando juntos (sem a benigna influência da civilização europeia dada pelos Wengers, pelos Mourinhos, pelos Hiddinks, etc) transformam-se num adversário perigosíssimo...para o Butão. O virus da mediocridade é tão poderoso que mesmo os três únicos jogadores de futebol que por ali andam (Rooney, Lampard e Terry- não, aquele touro com cérebro de ervilha que joga no Liverpool não entra nestas contas) teriam de prestar provas ao Vilafranquense se por lá passassem agora. Dizem que ainda podem ganhar o Mundial. Pois podem. A Coreia do Norte também. Mas deixemos de falar da selecção inglesa, e abordemos o futebol. Da Alemanha, em concreto. Agora que voltou a ter, pelo menos, quatro jogadores (cinco, já que o Ozil vale por dois) que conseguem encarar uma bola de futebol como uma amiga e não como um mero dispositivo mecânico cuja função é ser vergastado com electricidade proveniente da energia neuronal, nada melhor do que recordar um tempo em que a Alemanha ainda tinha quatro jogadores, pelo menos, que conseguiam encarar uma bola de futebol como uma amiga, mas que devido ao cansaço acumulado por cerca de milhares de jogos em conjunto, já a tratavam como um mero dispositivo mecânico cuja função era ser vergastado com electricidade proveniente da energia neuronal. A Alemanha do Mundial-94 era uma selecção a que os "jornalistas" desportivos de agora classificam como estando em "fim de ciclo". Matthaus, Buchwald, Moller, Kohler, Voller, uma miríade de magnífcos que já vinha desde o Mundial de 1954, uma máquina que já deixava entrever fios cheios de ferrugem e um cheiro a enxofre que nem se podia. Era o fim de festa de uma geração, um espectáculo tão decadente como o baile de nazis paneleiros do The Damned viscontiano. Depois de tanto futebol insosso, chegaram aos quartos e foram para o caralho das budweisers, graças a um golo do Stoichkov e a uma cabeçada furiosa de Letchkov, o gajo mais parecido com aquele tipo que no Ed Wood tenta passar pelo Bela Lugosi, sim esse, o do braço a tapar a cara. Uma desgraça, pois nesse Alemanha-Bulgária de 10 de Julho de 1994, a casa estava, novamente, a abarrotar de familiares, que não gostavam da Alemanha, porque eram todos nazis e muito maus, e por isso gritaram os golos búlgaros como se fossem do Brasil, ou mesmo de Portugal. E a mim só me faltou chorar, porque a Alemanha foi a selecção que decidi apoiar entre 1990 e 1996, baseado não sei em quê, e nem o Kostadinov no outro lado poderia impedir esse facto. E pronto.

Próximo: Brasil-Holanda ou o ciclo dos dez anos.

06/06/2010

Stroheim, uma das referências para os jeunes cinéastes.



Evidente, miss Swanson. É na sequência africana que o allure e o divertimento são substituídos pela depravação (uma língua a percorrer os lábios), pelo Mal (duas órbitas negras no lugar dos olhos), pela deformação física, por putas oportunistas, pelo negócio e pela avidez, matéria mais do que familiar a quem a estava a filmar. Não admira, então, que tenha despedido o amável Stroheim quando reparou que os jogos florais de Queen Kelly não iriam continuar por muito mais tempo. Quando isso sucedeu, Erich ficou feliz da vida, porque tinha apostado 1000 dólares com um amigo em como, pela 35ª vez, iria ser despedido de um trabalho, posteriormente retalhado de acordo com os desejos da estrela, protegida pelo dinheiro do produtor e seu amante, Joseph Kennedy, pai do John. A versão Swanson é, possivelmente, uma bosta sem remédio. A versão mais próxima da pretendida por Stroheim, distribuída e estreada em 1985 pela Kino- com a ajuda de fotogramas-, é rotina na primeira parte (embora com alguns dos mais belos inserts já vistos), e um esplendor de podridão e medo na segunda. Bem feita para a Gloria, que iniciaria aqui o período descendente da sua carreira, uma óptima notícia, pois assim talvez nunca tivesse havido Sunset Boulevard para ninguém, nem Stroheim mordomo para ninguém, nem isso tudo. Pouco mudou ao fim de oitenta anos, pois as estrelas, sempre preocupadas com a sua persona filmica, já andam cagadas de medo com os efeitos que o digital poderá ter na apresentação das suas trombas, daí contratando os melhores maquilhadores e exigindo meio Walter Murch em cada pós-produção. E assim acaba a nossa lição de hoje.

escutas.


Comentador Vasconcelos (CV): Estou? Maria João Seixas (MJS): Estou? CV: Estou? Hugo Gilberto? MJS: Não, não. Daqui fala a presidente da Cinemateca. CV: Ah sim...boa tarde. Que deseja?
MJS: Olhe, primeiro que tudo, quero felicitá-lo pela sua adaptação televisiva do Equador, do Sousa Tavares. Muito bonito. Segundo, vai haver aqui uma projecção de um filme de um tal de Monteiro e de seguida um debate. Estive a ver a lista dos convidados e não o encontrei a si, que me disseram que esteve envolvido na produção e realização do filme do tal de Monteiro. Disseram-me que estava zangado connosco. Então porquê?
CV: Porque foram maus para mim.
MJS: Eu não. Isso são águas passadas. Não quer vir cá? Ficaria muito contente, como de certo alguns dos seus colegas, como um tal de Costa.
CV: Não, não vou. MJS: Mas vai ter bolinhos. CV: Não vou. MJS: E vinho. CV: Não vou. MJS: E batatas fritas de pacote.
CV: Não vou. MJS: E espectáculo de luz e cor. CV: Não vou. MJS: E o João Botelho.
CV: Não vou, não vou, não vou. Foram maus para mim. Não me ligaram pêvas. Nem que estivesse aí o maior realizador vivo, o Jason Reitman, eu iria.
MJS: E mulheres nuas. CV: Hum...sério? Quem? MJS: Estava a brincar. Assim já vinha, não era? CV: Não... não. Só com o Reitman.
MJS: Pronto, pronto, não insisto. ( Como background sonoro, uma delicada voz de poeta, perguntando: Alguém quer ser meu amigo?). Não fico zangada consigo por isto, até porque aquela sua adaptação de o O Delfim estava maravilhosa. Muito bonito. E felicidades também para a sua filha. Adoro aqueles estendais nas pontes e os bidons de prata.
CV: Não é minha filha. MJS: Não? Felicidades para ela, na mesma. Boa tarde e adeus. CV: Boa tarde.

...e não consegui demovê-lo: ele não veio.

Depois de desligar o telefone, Comentador deslocou-se para a sua secretária, por cima da qual encontrava-se uma folha A4 rabiscada com pequenas notas a vermelho:

Próxima película: mamas-Soraia-50 planos decote-Soraia-150 planos rabo-Soraia-25 planos (2 close ups) lábios com baton-Soraia-65 planos Nicolau Breyner-700 planos influências-referir-conferências. imprensa- Buñuel, Sirk, Reitman

Na parede em frente, dois posters cinematográficos gigantescos, ambos edição original: Jules e Jim e Pátio das Cantigas, este com dedicatória do Cardeal Cerejeira. Comentador elevou a cabeça, suspirou, recostou-se na cadeira, colocou as mãos atrás da cabeça, e disse: Querem dobrar-me, não é? Eu mostro-lhes, eu mostro-lhes como é.

jogos mais ou menos inesquecíveis de certos Mundiais-6.


Uma mera reminiscência aconselha-me a escrever que o Argentina-Roménia, dos oitavos-de-final do Mundial-94, foi o melhor jogo que já vi nas copas. Uma vez mais, já pouco ou nada me lembro dele, a não ser que o Radociou marcou um ou dois golos, que estava um dia solarengo e que estavam dois Maradonas no estádio, um na bancada e o outro no relvado, prova irrefutável do obsoletismo de uma certa teoria da natureza física, a de que o mesmo corpo sólido não pode ocupar duas áreas de espaço diferente ao mesmo tempo. O primeiro Maradona estava na bancada, a chorar como uma criança, porque dias antes do jogo tinha acusado uma coisa chamada nefredina ou quejandos, uma substância que o ajudava a não ter alucinações, como por exemplo confundir a bola de couro com uma bola de coca, como aquelas que o Ray Liotta mete no saco, no Goodfellas, mas em tamanho XXL. O segundo Maradona espalhava a "magia do futebol" por aquilo a que alguns, com pudor, chamavam "relvado", mas que na verdade eram random leaves apanhadas nas pradarias do Kansas, bastamente cortadas, ficando com apenas um metro de altura. O primeiro Maradona, depois do jogo, ou antes, já não me lembro, afirmou numa conferência de imprensa que jurava pelas alma das suas filhas que jamais tinha tomado a tal da nefredina. Pior seria se tivesse dito "que caia já um rinoceronte em cima da minha Gianina se estou a faltar à verdade!", pois neste momento o Aguero andaria amantizado com o Quique. O segundo Maradona, aos vinte e nove anos, atingia o cume da carreira, bem como a Roménia, que nem antes nem depois voltaria a fazer igual (perderia com os suecos, nos quartos, com provavelmente algum golo do Kennet Andersson, um tipo que festejava os golos com os dois indicadores a fazer de pistolas). O primeiro Maradona acabava de vez com a sua já triste vida nos relvados, enveredando por um novo desporto: tiro aos jornalistas. Tal como George Lucas continua afastado do cinema desde 1971, também o primeiro Maradona julga que ainda permanece no ambiente da bola. Em ambos os casos, alguém que tenha a piedade de elucidar os dois senhores. O segundo Maradona, até 2006 ou 2007, foi a principal referência internacional da Roménia, a par dos ciganos que andam pelo metro a vender pensos e de muletas, que mal largam quando saem da carruagem.

Próximo: Alemanha-Bulgária ou o Bela Lugosi marcou um golo.
Related Posts with Thumbnails