09/06/2008

gelado #4



Enquanto nalguns países a população procura fugir dos seus males no refúgio aconchegante do futebol, os dois protagonistas de Shatranj Ke Khilari desligam-se do mundo real através da prática incessante do xadrês. A região indiana onde vivem prestes a ser tomada pelos ingleses, os problemas com as respectivas esposas, os ressentimentos do passado: toda esta malaise é suprimida com a fruição do jogo mental, seja com as peças reais ou com peças de fruta a simularem bispos, rainhas e cavalos. Satyajit Ray constrói duas narrativas paralelas, uma envolvendo a vida mundana dos nossos heróis, e outra cujo epicentro é a relação diplomática entre o Rei indiano e os governantes ingleses (Richard Attenborough anda por ali), tudo isto passado no Séc. XIX. A comédia de costumes associada à primeira é harmoniosamente balanceada com a gravidade teatral da segunda, daí resultando um filme de uma enorme riqueza emocional, em que a caracterização do indivíduo nunca descai para terrenos caricaturais, mesmo quando o pitoresco faz a sua aparição. Um filme de época livre de espartilhos prestigiantes e académicos.

Innisfree utiliza The Quiet Man como mcguffin para tratar de coisas intemporais: a passagem do tempo, o envelhecimento, a morte, a melancolia, a relação do Homem com a Natureza. José Luis Guerín viajou até à pequena ilha irlandesa onde John Ford rodou a obra citada, e a partir daí criou um objecto cinematográfico que não assenta facilmente na plataforma documental. Re-ficcionalizando algumas das passagens de The Quiet Man com os habitantes de Innisfree, detendo-se longamente em ribeiros, lagos e florestas, estabelecendo raccords oníricos e impossíveis entre a vida no ecrã e a vida actual (a cena em que Wayne atira o seu chapéu), Guerin parece querer sublinhar o choque entre o idílico cinematográfico e a entediante e rotineira existência da realidade. Os planos contra-picados na floresta, as ruínas, e uma frase que se vai repetindo diversas vezes (Estão todos mortos), contribuem para fomentar a sensação de estarmos a visionar uma paisagem assombrada, ausente do mundo. O que ainda mais me agradou foi a atenção prestada aos rituais campestres, simples tarefas como apanhar lenha, ordenhar vacas, partir árvores através de métodos ancestrais, sequências de um extraodinário trabalho sonoro. As cenas no pub The Pat Cohan, onde muitos dos figurantes de The Quiet Man contam histórias e mostram fotos da rodagem, cantam e bebem, falam do IRA e dos ingleses, estão impregnadas de melancólica resignação, um último suspiro antes de muitos deles baterem as botas. Innisfree, para além dos seus prodígios formais (uma montagem mais do que visível, da autoria do próprio José Luis), é um manifesto de dedicação ao cinema e ás suas memórias, como o cineasta espanhol voltaria a evidenciar mais tarde.
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