16/06/2008

gelado #9



É incoerente e não faz dinheiro: foram estas as razões para o estúdio Nikkatsu, especialista em Série B japonesa, despedir Seijun Suzuki após a estreia de Korushi no rakuin, ou como ficou conhecido para a posteridade, Branded To Kill. A flexisegurança da companhia ficou vesga perante tanta idiossincracia, um policial urbano onde convergem surrealismo, non-sense e referências à pop-art (então na crista da onda), em que a continuidade é abandonada em favor de instantâneos delirantes; não admira que tipos como Takeshi Kitano ou Kar-Wai ( e também Tarantino) tenham Suzuki como um dos seus autores de cabeceira. A história de um hitman a contas com uma obsessão amorosa, um fetiche pelo cheiro do arroz a cozer, e uma rivalidade com outro assassino (este singularmente designado Number One) é mero pretexto para uma tapeçaria oblíqua e sem aparentes ganchos de causa-e-efeito, onde golpes de teatro se sucedem como pãezinhos quentes a saírem do forno. Seijun emprega uma imaginação de banda-desenhada a Branded to Kill, em que cada plano, captado através dos mais estranhos ângulos, se assemelha a uma prancha animada de carne e osso. Que ninguém venha aqui à espera de "personagens humanas" e "lições de emoção", mas antes com a consciência de que irá assistir ao esfrangalhar das regras de género em pequeninos fragmentos, sem lei nem roque, e tendo como único limite a capacidade de invenção do cineasta. Obviamente, isto era demais para o lucro empresarial, sempre disposto a procurar e a dar mais do mesmo, seja no Japão, nos EUA, ou nas ilhas Galápagos. O reconhecimento artístico, porém, surgiria mais tarde, vindo de gente respeitável como...

...Johnnie To. O seu Fulltime Killer, um dos 2345 filmes que Johnnie já realizou só nesta década, readapta a mais simples premissa de Branded... (rivalidade entre dois assassinos e uma mulher no meio), e transforma-a num pastiche de tudo o que costumamos associar ao cinema de acção Made in Hong Kong, aka Deus-Nosso-Senhor John Woo. Opondo o discreto e letal O ao espalha-brasas e letal Tok (o nosso conhecido Andy Lau de Os Infiltrados), Fulltime Killer é aquilo a que o lugar-comum tratou de designar style over substance, com múltiplas câmaras lentas, situações inverosímis e tiroteios infinitos a desbaratarem qualquer noção de lógica. Um mero pormenor: todo o excessivo fogo-de-artifício (no final há um, literalmente) da obra é propositado, uma sátira/homenagem à coolness e ás acções típicas nos filmes do mesmo género, em que as explícitas alusões a Point Break (ver para crer, senhores e senhoras) ou Desperado não surgem por mero acaso. Claro que este pendor auto-reflexivo tem os seus limites (como se To desejasse outra cousa senão gozo elevado à escala máxima), e a última meia hora é chover no molhado do absurdismo, até porque vai-se abandonando progressivamente o carácter lúdico das citações para dar primazia à seriedade de pacotilha que tanto enferma algumas obras visadas. É um To menor, mas um daqueles que marcha bem com uma bejeca e um prato de tremoços, esse delicioso marisco.
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