Bebedeiras de costa-a-costa, caçadas, porrada nas mulheres: senhoras e senhores, meninos e meninas, esta gelataria tem a honra de apresentar o Hemingway da película, o Miguel Sousa Tavares do cinematógrafo, o cineasta de sonho de Maria Teresa Horta,...John Huston. O Homem que, nos intervalos da marialvice, realizou uns quantos grandes filmes, por mais que custasse à palavra sagrada dos Cahiers (prefiro o pior filme de Hawks ao melhor de Huston, Truffaut). E que não se coibiu de gozar à descarada com um dos géneros que ajudou a cimentar na consciência pública, o noir, como é exemplo Beat The Devil. Uma obra que eu conhecia apenas de nome, e sabendo que nela participava Humphrey Bogart, tratei de fazer uma conta de somar que se revelaria errada: Huston+Bogart+Beat The Devil= filme negro como bréu. Digamos que Boggie passeia a sua persona no filme, resistindo estoicamente ao rebentar de riso, Peter Lorre (I'm Not Mr. Horreur! I'm Mr. O' Hara!) interpreta um vilão como se estivesse num film noir a sério, o que só torna a sua presença ainda mais hilariante, há Gina Lollobrigida com um ridículo sotaque britânico, há paisagens naturais dignas de figurarem no suplemento Fugas, há um árabe que suspira por Rita Hayworth, um capitão italiano de um barco português (!) que grita como se estivesse no mercado do Bulhão a vender peixe, e há um John Huston, ele próprio, a efectuar picados e contra-picados porque sim, porque isto é um filme de férias para gente que se quer descomprimir. Para o desrespeito e o deboche atingirem a perfeição, só faltou que a Jennifer Jones e a Gina se embrulhassem à frente de Humphrey; seria o melhor gag de Beat The Devil. Ah, e esqueci-me de referir, mas acho que se se procurar muitíssimo bem, pode-se encontrar por ali um arremedo de história...
Who...killed...Sloan?.
Deixemo-nos de brincadeiras, que agora é tempo de Samuel Fuller, um daqueles cineastas, como Ford ou César Monteiro, que eu teria medo de encarar olhos nos olhos. Schock Corridor teve um orçamento por volta dos cento e cinquenta escudos, mas o resultado final é esse valor multiplicado por muitos zeros. Filme de um tempo e de um espaço bem delimitados (anos 60, USA), capitaliza o seu mcguffin (jornalista que simula estar louco para assim entrar num manicómio e descobrir quem assassinou um dos pacientes) para abordar alguns dos temas escaldantes da altura, como a segregação racial, a guerra nuclear ou a dissidência à pátria, cada um deles entregue a determinado doente, cuja loucura é um sintoma de expiação de culpa das "falhas" cometidas anteriormente. Fuller nunca foi um cineasta de bonitas porcelanas e deslumbrantes bordados, por isso nada disto é (muito) subtil, os comportamentos dos personagens sucedendo-se como epidérmicas acções/reacções, convenientemente enquadradas por uma fotografia áspera de Stanley The Night of The Hunter Cortez (há súbitos momentos de cor, e funcionam como explosões a rasgar o monocromatismo). O que realmente importa é que este é um filme de um imediatismo chocante, e em alguns momentos senti-me como se estivesse no interior do manicómio com aquelas pessoas, ouvindo os gritos, sentindo a estranheza daquele ambiente; não se pode pedir mais nada ao cinema, quando ele nos leva a crer que também nós somos uma personagem. Quando tudo termina, o melhor é levantar-se do sofá, olhar o céu, e dizer baixinho, sim, ainda estou aqui. Filmão do caralho, é o que é.