11/07/2008

gelado #35



Bem, esta é a última aula de cinema do ano lectivo. Alguma pergunta que me queiram fazer antes de eu a dar por encerrada, seus idiotas? Sim, senhor professor. Queríamos que nos recomendasse um filme que frustrasse com mestria as nossas expectativas baseadas num olhar domesticado pelas incursões aos multiplexes do Colombo e do El Corte Ingles. Com certeza, filhos da mãe. Los muertos, do argentino Lisandro Alonso, é o vosso filme. Além do mais, confirma que todos os Lisandros são quase-génios. Agora desandem.

O professor tem toda a razão. Los Muertos instaura, desde a espantosa sequência inicial passada na floresta, uma sombra de inquietação e incerteza que joga de maneira subtil com a percepção do espectador sobre os códigos de género, nomeadamente o thriller e o filme de terror (isto não é um ataque de delírio, asseguro). A história de um homem que sai da prisão e vai visitar a sua filha, para isso tendo de atravessar um rio, é como assistir à filmagem em tempo real de uma elipse: não sabemos quase nada, não temos pistas, não há ramos de informação que nos consigam amparar, apenas e só imagens em bruto, e é com elas que temos de ficar para apreciar este filme belo, misterioso, primitivo. Esta vertente primitiva atravessa o filme todo, e a nossa personagem é a encarnação mais pura da máxima A man's got to do what a man's got to do, sem mesquinhices ambientais ou ideológicas a embaciarem a sua consciência, e se para tal desiderato tiver de se arranjar uma catana (prodigioso raccord com a sequência do início), não há nada que o possa impedir. A austeridade dos planos e o miraculoso trabalho sonoro são as armas de Alonso para o seu joguete de nervos com quem está a ver, e uma prova do rigor e da coerência de atitude que pauta Los Muertos do primeiro ao último segundo. O último plano é um daqueles fora-de-campo que causam mais medo que a grotesca quincalharia gráfica do mais básico horror movie. Um homem, uma canoa, um rio e luxuriante vegetação: Lisandro já tem o seu Heart of Darkness.

Também da América do Sul, igualmente com poucos anos de vida, Céu de Suely, longa de Karim Ainouz que teve alguma projecção internacional, menos em Portugal, onde só se estreiam filmes brasileiros que se passem em favelas (algo como estrearem no país irmão apenas obras portuguesas cujas mulheres tenham bigode, os homens chamarem-se todos Manel e onde obrigatoriamente tem de existir uma sequência em Fátima). A Suely do título é uma moça que juntamente com o seu filho bebé regressa de São Paulo para a sua terrinha, e que aí promete o paraíso a quem ganhar o sorteio de uma rifa muito especial. Karim Ainouz tenta a especialidade arte e ensaio, mas este escriba sentiu por vezes um registo de (demasiada) pose artística nos enquadramentos e nas relações entre as personagens, para além da existência de sequências algo decorativas (sobretudo um bailarico a pedir mais cortes) e uma sobreposição musical nas imagens que está tão adequada como a presença de um fã (nático) de Star Wars na rodagem de um filme porno. Como filme de cenas que é, o seu principal mérito é precisamente esse, o de construir alguns momentos viscerais e menos calculistas, e o meu destaque vai para um brilhante duelo entre Suely e a sua avó, com Ainouz a destilar camadas de tensão a cada segundo que passa. No seu todo, O Céu de Suely é desequilibrado como um adolescente acabado de sair da 24 de Julho, mas como supremo paradoxo são as suas debilidades (a tal pose) que mo fazem recomendar. E a actriz principal tem umas grandes pernas.
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