21/07/2008

gelado #38



Não possuo conhecimento nem profundo nem semi-profundo da obra de Roger Corman, mas estou a par, com enorme profundidade, da lenga-lenga associada ao seu modus operandi: rodagens de dois-três dias, orçamentos à volta dos dois mil reis, multiplicidade de géneros prontos a serem consumidos pela geração drive-in, uma lógica de total rapidez, eficácia e economia (admira-me que o negócio Corman ainda não tenha surgido nas páginas do assustador suplemento económico do Público como um exemplo a seguir). Pois então não foi o meu espanto quando me deparei com a adaptação cinematográfica baseada no extraodinário The Pit and the Pendulum de Edgar Allan Poe, a minha verdadeira primeira incursão no cinema de Roger, já que antes tinha visto uns dois ou três filmes do homem, sem saber que eram dele, e pouco me ficou na caixa craniana. E agora o leitor pergunta, enquanto tenta aceder a um site de cinema porno alemão, ou na pior das hipóteses ao site do DN: qual foi o teu espanto, idiotazinho? Pois bem, eu por ali vi luxuosos ornamentos cenográficos, vi um tratamento da imagem impecável, vi digressões em flashbacks tintadas de sumptuosos filtros violeta, tudo sinónimo de inexcedível cuidado e ponderação; estava à espera de diabólico kitsch, deparou-se-me um genuíno ambiente de sofisticado romantismo funesto e macabro. Vincent Price, a Voz, está impecável como o atormentado marido de Barbara Steele, carregando na consciência uma tonelada de sentimentos de culpa, e não foi apenas por isto que Vertigo amiúde se me alembrou. E a claustrofobia de estúdio permite uma fácil e imediata identificação do espectador com o espaço, sem dispersões desnecessárias e ambíguas. Um muito bom filme, a que não será alheio o longuíssimo período de rodagem da acção, uns eternos quinze dias. Resta acrescentar que esta versão de Roger Corman nada tem a ver com a história original de Poe, e muito gostaria eu de uma adaptação contemporânea e fiel ao conto; depositem na minha miserável conta uns simples trinta milhões de dólares, que eu imediatamente contracto o Brian de Palma.

Há muitas coisas que me metem medo neste mundo, desde um editorial de João Marcelino ao telejornal da TVI, mas muito poucas conseguem assustar-me mais do que duas perigosíssimas e fanáticas seitas: a da Apple e a dos filmes de Série Z. Da primeira eu fujo a oito pés, e quando o destino se encarrega de me fazer encontrar com um elemento da dita, eu apenas digo mecânica e rigidamente "sim, é muito lindo", "sim, é extraodinário", e "ui, o iphone, que maravilha". Já quanto à segunda, também a evito o máximo que puder, mas isto só acontece depois de ter levado uma valiosa lição para a vida, quando num momento infeliz e preconceituoso, tive a brilhante ideia de mandar toda a série Z para a puta que a pariu, isto defronte de um dos fundamentalistas da tribo, o que originou alguns momentos de tensão; com tais seres humanos, só quero paz, do fundo do meu intestino grosso (aposto que há pessoas que ainda vêm aqui para aprender alguma cousa de cinema). Esta algaraviada a propósito de José do Caixão, ou melhor, José Mojica Marins, e da obra que lhe granjeou fama nos domínios do (o)culto cinematográfico, À Meia-Noite Levarei sua Alma. Digamos que a personagem Caixão é muito mais interessante que o realizador Marins, com o primeiro a vaguear por uma cidade brasileira de chapéu alto e capa preta, aterrorizando com a sua mera presença melíflua a população local, elaborando considerações sobre a futilidade dos ídolos religiosos de pés de barro, um carácter algo nietzschiano bem interessante. E depois há o filme, de terror, concebido por Mojica como se estivesse possuído por Ed Wood, com sequências de um desbragado e pindérico gore e interpretações de fazer chorar a rir as pedras da calçada. Enquanto Zé-personagem possui uma certa aura aristocrática e carismática, Zé-realizador possui tanto glamour como um pedreiro a partir brita às oito da manhã num apartamento dos subúrbios lisboetas. Ei, mas longe de mim escrever que isto é mau; aliás, é magnífico, extraodinário, melhor ainda que todos os discos juntos do Scott Walker, superior a qualquer robalo grelhado em Setúbal. Muito boa noite.
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