Emmanuelle Béart a explodir com um carro e a girar a cabeça até o olhar incidir na audiência. A segunda coisa que eu mais gosto em Mission: Impossible é Tom Cruise, e nem vou revelar detalhes do sonho erótico que tive após a recente revisão do filme de Brian de Palma, e que o envolvia na companhia do General Loureiro dos Santos num hotel ali para os lados de Espinho. Cruise, a estrela toda-poderosa, e tendo em conta o seu estatuto, é pouco mais do que uma discreta presença nos primeiros vinte minutos, disseminado na equipa igualitária de Jon Voight, e se ao fim desse período de tempo torna-se inevitável que a estrela capte todas as atenções, nunca deixei de o entender como apenas mais um elemento na engenharia de pura precisão que é Mission: Impossible, algo que foi completamente desbaratado na continuação de John Woo (ainda não vi o terceiro). É curioso que, sendo uma obra recheada de mirabolantes momentos de desafio às leis físicas e de teste aos limites do impossível numa tela do cinema (não sem ironia), Mission: Impossible quase passe, doze anos após a sua estreia, por um objecto modesto e anacrónico nestes tempos pós-Wachowski, em que balas viajam quilómetros (eu não sei se viajam, apenas li o Jorge Mourinha), pessoas desviam-se das mesmas em hyper-slowmotions e carros andam a mil à hora (os manos, ao que se sabe, já têm outras inverosimilhanças na calha: Benfica novamente campeão Europeu, o Tv Rural voltar à programação da RTP, Vasco Pulido Valente escrever uma crónica esperançosa para este ermo miserável (sic), aka Portugal); quando Cruise salta para cima do comboio, e o vemos em plano médio a debater-se para lá se aguentar, a paisagem cardboard é tão visível que não deixamos de pensar o quão orgulhoso Hitch se sentiria ao ver esse momento (é Verão, tenho o corpo a suar que nem um Mário Bettencourt Resendes, não me peçam para deixar de ser preguiçoso ao ponto de não associar Alfred a um trabalho de Brian). A partir de agora, total silêncio, ordena Cruise a Jean Reno, antes da coreografia daquela que, quanto a mim, estará entre as candidatas a melhor sequência de todo o cinema dos anos noventa, uma depuração incrível de toda a tralha "moderna", apenas o uso da velha escala de planos como função primordial para o que se pretende: obrigar o espectador, mesmo o ateu, a juntar as mãos e iniciar uma reza de grande gabarito para que as energias positivas passem para o lado de lá; e silêncio, muito silêncio. Tal como outros filmes do cineasta, também por aqui se goza e constata a verdade da mentira das imagens , e se se procurar a definição filme de autor num blockbuster, então essa busca terá de passar obrigatoriamente por aqui.
Que têm comum a não estreia de Russian Ark em salas portuguesas, o programa O Dia Seguinte, ou os fóruns gays dedicados à artista conceptual (já venho, vou só ali à cozinha buscar um lenço para enxugar as lágrimas. Voltei) Madonna? São três dos maiores escândalos nacionais neste ainda jovem séc. XXI. Russian Ark é um filme único, e isto é absolutamente verdadeiro, não é um daqueles filmes únicos que nós por vezes classificamos de filmes únicos apenas para demonstrar a nossa inebriante admiração por esse filme único, mesmo que esse filme único contenha situações e motivos repisados e revistos centenas de milhares de vezes noutros filmes únicos; filmes únicos, a expressão da semana. E se catalogo a obra de Alexandr Sokurov de filme único nem estou a emitir uma opinião de valor, antes subscrevendo uma simples constatação: Hitchcock tentou-o, de Palma, Tarkovski, Mizoguchi, Angelopoulos, Ophuls também são (foram) adeptos da técnica, mas foi só aqui, precisamente aqui, como diria o dr. José Hermano (este blogue, como já ficou evidente, é apenas para consumo interno) que o plano-sequência existiu na sua plenitude, do primeiro ao último segundo de película, neste caso, de digital. O exercício já levanta espanto: sabe-se que Sokurov e a sua equipa dispuseram de escassos dois dias no Hermitage para a rodagem, um tempo recorde para ensaios e acção; será Sokurov humano, ou já estará ele no mesmo patamar de Bob Dylan e Leonard Cohen? Parece que à quarta tentativa o tour-se-force resultou, e se há um segredo eterno sobre o fabrico da Coca-Cola, também eu gostaria de saber como é que o cineasta russo e o director de fotografia Tilman Buttner (o mesmo do pavoroso Run Lola Run) filmaram a sequência do baile por entre centenas de figurantes, a com a câmara a fluir pelas danças como se fosse invisível. O olhar do espectador, acostumado ao corte, terá apenas de se habituar ao jogo, e se essa adesão surgir, a fruição será excepcional, chegando-se ao ponto de se ignorar a inovação, restando a admiração pelas situações que se vão desenrolando. Apesar da profunda melancolia, Russian Ark não é nenhum objecto hermético, até deixando escapar um aroma de humor cáustico, e não será preciso ter conhecimentos enciclopédicos da história russa para devidamente o apreciar. Mark Cousins, crítico inglês, escreveu que Russian Ark é a maior ruptura na linguagem cinematográfica após A Bout de Souffle, opinião desmentida pelo próprio Aleksandr, para quem esta ideia de eterno plano-sequência sempre existiu, faltando apenas a sua concretização (desse ponto de vista, já tudo existe, falta apenas alguém descobrir o raio da maneira de se viajar no tempo, para assim eu regressar a 1 de Novembro de 1755 e avisar as pessoas de que é favor não se aproximarem do rio). Bazin, provavelmente, iria delirar com isto.
Mission: Impossible -****
Russian Ark -*****
Mission: Impossible -****
Russian Ark -*****