Lembro-me muito bem da morte de John Fitzgerald Kennedy, tão bem como se tivesse ocorrido há somente quarenta e cinco anos. Estava eu tranquilamente a escovar o pêlo do Heitor, um puro sangue lusitano, na fazenda do Dr. Mulher, meu pai, que ele possuía perto de Barrancos, quando o meu mais velho, então com dezasseis anos, se aproximou da minha beira, resfolegando como um lunático, tendo só ao fim de uns quantos segundos afirmado, entre choraminguices, "Mataram-no!". Quase desfaleci, e ao Heitor por pouco não acontecia o mesmo. De visão turvada, entrei em casa do Dr. Mulher, meu pai, e deixei o meu mais velho prostrado na lama do estábulo a gritar "Mataram-no!" desalmadamente. Aferrolhei a porta de meu quarto, e telefonei imediatamente ao Chico António, um amigo de infância que trabalhava há meia dúzia de anos na valorosa P. Aos gritos e aos soluços, seguiu-se este diálogo: "Mataram-no, Chico! Os lagostins...foram os lagostins?" "Ah?" "Vou liquidar um por um!" "Oh homem, de que fala?" "O Dr.! Que vai ser de nós? As províncias, o cardeal C., a ordem, o Henrique Mendes, o Solnado...vai tudo abaixo!" "Calma, calma. Quem morreu foi o JFK, esse lagostim." "Ah, bom. Domingo vai à Luz?" "Vou, vou. Cinco-a-zero é derrota contra aqueles javardolas do Norte. Vou ter de ir, tenho um trabalhinho em espera ali na Maria Cardoso." "Está. Até Domingo, e desempenhe com a mais alta distinção essa sua tarefa." Muito mais aliviado, agarrei no chicote, pertença do Dr. Mulher, meu pai, saí do quarto, e voltei ao vestíbulo, onde o meu mais velho continuava a clamar aos céus "Mataram-no!". Sem o avisar, desbastei uma chicotada nos costados, e outra, e mais outra, e depois na barriga e nas pernas. "A chorar pelo lagostim, hem? Vou-te rebentar em três, ou não seja eu filho do Dr. Mulher, meu pai, teu avô, sogro da minha mulher, irmão da minha tia, tio da prima Maria José!" O meu mais velho foi parar ao hospital, onde esteve em repouso três semanas, mas a lição foi-lhe deveras proveitosa: actualmente, neste hediondo mundo sem leis e sem pulso firme, ele é um dos top minds dos bravos do Compromisso Portugal, e unha com carne com pessoas da mais alta estirpe como o Dr. Rui Ramos ou o Dr. Luís Campos e Cunha. Aníbal de Sousa Mulher, Croniquetas imemoriais de um reaccionário alfacinha, pp. 117-118, edição Novi Sad.
Acamado, vítima de suores frios e febres quentes, que soube estarem relacionadas com as capas da a A Bola nos últimos dois meses, a audição excessiva (e involuntária) de Kizombas e Kuduros numa certa praia, e uma crescente alergia à nobre expressão "direitos humanos", que tem fuzilado os media nos últimos dias, mesmo assim aproveitei para ver uma ou outra reprodução de filmes, um dos quais Report, do recentemente malogrado Bruce Conner. Michael Phelps, o Bob Dylan da natação. Conner, artista dos mil e um ofícios, um dos pais do famigerado videoclip musical, reúne neste seu trabalho um acervo de imagens de arquivo agrupadas de forma aparentemente disjuntiva e estilhaçada, um caleidoscópio audiovisual que evita a compreensão televisiva e socialmente aceite da morte de Jack K. Repetindo até à exaustão as mesmas imagens do cortejo presidencial antes, durante e logo depois dos tiros da CIA, perdão, do Oswald, escurecendo o ecrã até não restar mais nada senão o relato radiofónico dos acontecimentos, cruzando fragmentos de JFK com visualizações díspares, desde touradas a explosões e a vacas a pastar, o Michael Phelps acaba de ganhar mais uma, desta vez em colectivo Conner retira ao espectador a possibilidade de estabelecer um nexo causal neste caos formal, um significado natural, precisamente o que a televisão tentou oferecer ao povo inculto, e que aliás continua a oferecer. É como se o filme estivesse sempre um passo bem à frente do observador, que, coitadinho, apenas pode desejar que o Phelps ganhe as oito medalhas sem espinhas efabular sobre o eterno mistério da morte de John. Report é uma obra sobre a realidade, confusa e ambígua como ela sempre foi. Oh cum cabrão, agora 'tá a dar judo.
JFK tem tantas semelhanças com Report como assombrosas diferenças. Por um lado, há a mesma montagem em curto-circuito quase permanente, empregue sobretudo na explanação final no tribunal (lágrima), com planos a chocarem uns nos outros de maneiras que nem o próprio Sergei imaginaria serem possíveis. Mas, e este mas é tão grande que daria para completar uma volta ao corpo do João Gobern em de meia hora, o que Conner quis deixar fora de campo, esconder dos sentidos, é o leitmotiv de Oliver Stone: escavar, escavar, escavar, até já não existir a mínima dúvida sobre o porquê, como, quem, onde, quando relativos à morte do berlineiro. É fácil não gostar de JFK, como é facílimo não gostar de nenhum dos filmes de Stone ( e eu, exceptuando este, não gosto de mais nenhum na sua totalidade), tal é o pasto verborraico a servir de combustível para a esquerda anti-americana, ou a grandiloquência histérica de certos momentos-chave, como se o cineasta precisasse de reforçar ainda mais por imagens e sons o que já é suficientemente grave e perturbador sem intervenções artísticas. Contudo, como escreveu Roger Ebert, prefiro moods a cauções de verosimilhança históricas, e portanto, venham de lá esses moods, pois é isso que me faz gostar bastante do filme. Remeto o ponto de vista de Oliver para segundo plano, e satisfaço-me antes com a sua obsessão, o modo sem freio como vai tecendo datas, assuntos, acontecimentos, pessoas, uma teia e um turbilhão de informação que jamais me chateia por um segundo que seja. Alguém tem o número de tlm da Telma Monteiro? E depois há aquela hora final, thriller, suspense e gloriosa demagogia lacrimejante, vista e revista dezenas de vezes, com especial enfoque na parte Green, Green...or Abort, Abort! O meu pai, que por acaso não é Mulher, na primeira vez que viu o filme, terminava cada sentença anti-fascista de Jim Garrison/Kevin Costner com sonoros "pois claro, pois claro, é isso". É prestígio, mas do muito bom (acho eu). De bom grado apanharia porrada da Telma.
Report- ***
JFK- ****
Michael Phelps- *****
Telma Monteiro- *****