23/08/2008

gelado #53



Das duas vezes que vi The General, a minha face mostrou-se tão expressiva e eufórica como a do realizador e principal actor do filme; nenhum esgar, nenhum franzer de sobrolho ou sequer um esboço de princípio de sorriso. Sim, atirem-me agulhas, pedras ou mesmo o Mendes Bota para cima, mas não acho nenhuma piadinha física à maioria da "comédia" de Buster Keaton, o que não invalida, portantos, que o possa considerar como um dos maiores de toda a eternidade, inclusive do Século XX. A admiração pela inteligência, pela infinita capacidade de criar sucessivas ideias em sucessivos momentos, pela ironia e, até, pela férrea perserverança da personagem quase não me deixam espaço para bellys laughs, ao contrário do que acontece com o outro fabuloso da época ou com o senhor que estará em destaque mais abaixo. Contemplo e aprecio uma grande obra, não um filme de fazer rir; não será por acaso, com certeza, que Keaton nunca teve o sucesso comercial a toda a escala de Chaplin. O génio e a universalidade estão reservados para muito poucos.

O leitor com certeza que conhecerá alguém que, tendo o café ou o Pingo Doce a menos de trezentos metros de casa, prefira ir até lá de carro do que exercitar a marcha; imagino, presumivelmente, que essa pessoa seja mesmo o leitor, um repugnante e nojento preguiçoso que mereceria passar um ano inteiro a ler o Avante!. A obsessão com o automóvel, movida pela sua utilidade e/ou status que produz, cujo resultado está espelhado na enorme quantidade de formigas a quatro rodas que viajam pelos alcatrões rodoviários mundiais, leva-me a estranhar que não ocorram mais situações como a descrita no fotograma de Trafic exibida aí acima: um choque de chapa e pneu que se transforma numa hilariante coreografia de bailado catastrófico. Trafic, a ressaca artística (e financeirra) do colossal desastre de bilheteira de Playtime, que deixaria Jacques Tati com dívidas em barda, configura mais uma saborosa sátira ao mundo tecnológico e ás suas virtudes e defeitos, tendo desta vez como alvo o carro, esse imprescindível diamante a motor, consagrada máquina da aldeia global ( no filme, todos falam várias línguas, um matafórico sinal daqueles tempos). Como em Mon Oncle ou Playtime, mas com uma maior modéstia artística compreensível, Jacques vai distribuindo falhas e faúlhas na oleada e indiferente mecânica moderna, e elas surgem ou de forma abrupta e isolada ( um telefone que emite um estalido) ou em continuum, como todas as sequências de uma exposição automóvel, saturadas de subtil slapstick, e que poderiam estar para Trafic como o monumental episódio do restaurante esteve para Playtime, se Tati não as entrecortasse com a outra (e principal) narrativa que se vai desenvolvendo. Há uma ou outra graçola mais óbvia, o que não deslustra a personalidade de um filme brilhante no modo como expõe o ridículo inerente ao mais trivial (quando se pára na estrada, o que se costuma fazer com o indicador?). O final é sublime, uma pacífica (?) resignação (?) ao poderio industrial. E depois há a chuva.

The General- ****
Trafic- ****
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