30/09/2008

gelado #94



Ler uma obra como A Formação da Mentalidade Submissa, em complemento com outras leituras dispersas sobre a manipulação do pensamento, pode ter gravíssimas consequências para o equilíbrio social e mental do indivíduo, embora não ao ponto de se chegar a fundar um blogue sobre cinema (o sobre é muito importante). Por um lado (o esquerdo), reconforta-nos o espírito, por o autor nos (re)confirmar ideias pré-estabelecidas sobre a manhosa teia urdida pelas minorias reinantes, e o modo como propagam silenciosamente e democraticamente variadíssimas ideias sobre a realidade (mediatizada) até se tornarem irreversíveis sensos comuns e certezas para o cidadão incauto; esta deconstrucção do modus operandi capitalista deixa-nos alerta e mais preparados para compreendermos o verdadeiro alcance de certas práticas e linguagens, que à primeira vista se assemelham a um inofensivo jogo neutral. Pelo lado direito, no entanto, a paranóia e o paradoxo espreitam: a adesão total a esta descodificação do real mediático pode levar uma mente a tornar-se submissa desse próprio estado de máximo alerta, tentando obsessivamente observar o mais pequeno e ínfimo detalhe propagandístico e ideológico no mais pequeno e ínfimo acontecimento, seja o modo como o caixa da Fnac nos olha ou um piscar de olhos de um político num directo televisivo. Aplicando isto ao cinema, minha nossa senhora, Jesus Cristo, João Bénard da Costa: mais vale pararmos até ao fim das nossas vidas com a visão de filmes, senão estaremos condenados a uma incessante e infernal busca pela matriz.

Com uma valente dose de paranóia ou de cínica perspicácia (também pode ser uma bebedeira, está tudo em aberto), pode-se considerar a hipótese de o Matrix ser um produto de uma matriz que cria a magnífica ilusão de se estar a criticar e a destruir a ela própria: efeitos especiais e visuais topo de gama; escolha de um actor cool e atraente; roupas vistosas, óculos escuros e look fashion; slow-mos espectaculares e embasbacantes para a malta jovem; apologia do uso da violência como ferramenta vencedora (guns, lots of guns)*; banda sonora moderna para agradar ao público MTV (esses rebeldes); estória de amor para agradar (supostamente mais) ao público feminino, logo mais dinheiro na conta; artes marciais reminiscentes de um jogo de vídeo; e por aí. Nada que todos estes items me importem, e não será por aqui que não tenho a obra dos manos Wachowski em grande conta, mas quando ouço (como ouvi uma vez), que o Matrix é um dos maiores símbolos pela liberdade humana, então torna-se claro que esse alguém já há muito foi apanhado, ou pela droga ou pelos adversários do Roddy Piper.

* irrepetível momento Pedro Strecht.
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