08/10/2008

gelado #106


O cinema está a acabar, dizem os mais optimistas. O cinema acabou, atrevem-se os trágicos. Os trágicos que me perdoem, mas eu sou dos optimistas, e por conseguinte, considero que o cinema está a caminho do fim. Tal como eu, o leitor, o John McCain que neste momento se está a rir para Obama, o Taj Mahal, ou o jaquinzinho. A última vez que comi jaquinzinho foi na Rua da Misericórdia, perto do Estádio, num modesto restaurante sem comida de autor, a blasfémia. Acompanhado de um divinal feijão preto; seguramente a melhor refeição tomada em Lisboa nos últimos dois, três anos, talvez apenas comparada aquela provada num outro estabelecimento recatado e sem fins lucrativos, onde o dono só sabe falar português e mal; foi na Rua do Arsenal (só faltava mais esta), um arrozinho branco com pastéis de bacalhau daqui (sim, estou a fazer aquele gesto com o indicador e o polegar no lóbulo orelhal). Relembro aos mais distraídos que este blogue pugna sem freio pela indulgência e pelo narcisismo cavalar. Quem se sentir perturbado ou irritado, pode ir consultar mais umas fotos do Jardim de Santo Amaro ou mais uns comoventes "Retratos de Trabalho", ou mais um emocionante "Hoje Acordei Assado", material altruísta e de dedicação ao povo. Onde eu aí? Ah sim, a Cláudia Vieira....perdão, o jaquinzinho. Está a acabar. Desde a famigerada UE ter proibido redes de pesca com buracos minúsculos, existem cada vez menos num prato ao seu dispor. E carapaus limados à algarvia igualmente . Contentem-se com espuma de limão grelhado com tofu e foie gras às três tabelas. Esta ideia de eu, burguesinho suburbano, me passar por defensor das tradições e gastronomias populares é a coisa mais ridícula que apareceu na net desde o Pedro S. Lopes aderiu à blogo-isfeira. Não tenho culpa, pois hoje numa Fnac estive a ler umas páginas de um livro do MEC sobre gastronomia portuguesa, e deu-me para a fome e para isto. Pronto, os jaquinzinhos estão-se a despedir. O Cinema também. Pela simples razão de que daqui a duzentos anos não estará aqui ninguém. Se enveredar pela ciência, posso argumentar com os cinco biliões de anos que distam para o Sol explodir e arrebentar com esta merda toda. Não haverá negativo que resista. Talvez sim, talvez o Homem, se ainda cá estiver, tenha arranjado uma engenhosa forma de se estabelecer num cu de judas universal, transportando com ele todas as coisas que nos fazem felizes, como os negativos filmicos, o bacalhau à Gomes de Sá, o Lisandro Lopez, e a erva do tabaco. Recapitulo, então, em face dos últimos desenvolvimentos e aleatórias projecções futuras: o cinema PODE não estar a acabar. Mas para alguns, ele já fechou as portas há muito. E é aí que entra Apichatpong Weerasethakul.

O senhor, tailandês de nascimento e de cidadania, tem um filme intitulado Mysterious Object At Noon. Retenho a primeira palavra, pois é ela que define, de forma simplística, todo o cinema deste enormíssimo cineasta. Os pródigos da desgraça argumentam com a estereotipização de imagens e enredos, de simbolismos repetidos até à exaustão, de estupidificação bovina, de retrocesso mental, de cedências televisivas: o cinema está mais morto que a libido de Brigitte Bardot. Por amor de Bènard, vejam os filmes deste homem. Vejam este Syndromes and a Century, um trabalho com mais suspense, imaginação e surpresas que um desses thrillers "que o fará saltar na cadeira", como anunciam nos trailers. Não sejam preconceituosos com "planos fixos" e "cenas paradas", e encarem o realizador como, para dar caução, um híbrido de Antonioni e Lynch em terras asiáticas. Uma arte da contemplação, da pausa, do real esventrado por rupturas que dividem, literalmente, filmes em dois, sem que exista fragmentação de um registo, de uma montagem. Deveria ser proibido por lei desvendar sinopses dos filmes de Apichatpong; este mundo é para se descobrir sem pré-preocupações de ordem narrativa. E com disponibilidade para se inebriar, coisa de não pouca importância. Mas será que já não conseguimos ver um filme que não nos agrida com metralhadas palavrosas? Imagem+som= parece mesmo básico.
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