Daney afirmava que a cinefilia é uma doença. Ter a cabeça inundada de (apenas) autorismo é outra. Deve existir uma quantidade apreciável de realizadores que fizeram, pelo menos uma vez na sua vida, um bom ou um muito bom filme, mas eu, a levar com banhos de autorismo desde tenra idade, ou não os conheço ou, se sei quem são, resisto a ir ao encontro deles (isto levar-me ia ao The Mist, para mim um dos melhores filmes estreados em sala este ano). The Queen of Spades foi descoberto há um par de semanas, por recomendação de um site na minha lista de credíveis, onde também fiquei a conhecer o nome de Thorold Dickinson, realizador da obra em questão, por sinal adaptada de um conto de Pushkin. The Queen..., não tendo a marca dos grandes, não é nenhum caderno de encargos a formalizar na repartição mais próxima: é notável, só. Um filme de intensa ambiência sobrenatural, sobretudo psicológica e atmosférica, utilizando apenas os devidos recursos da fantasmagoria quando necessário, em duas sequências fabulosas, com Dickinson a prolongar ambas com requintes de sado-masoquismo, sendo que numa delas há maestra apropriação do som. A recriação em estúdio de uma Rússia de época tem tanto de evocativa como de anti-decorativa; é mostrado o que tem de ser mostrado e apenas quando o tem de ser mostrado. E o chiaro-escuro dispensa os bonitinhos pictóricos, para enquadrar simbolicamente a dualidade do personagem principal, um alucinado Anton Walbroock. A minha cabeça está repleta de ideias feitas, teias de aranha inamovíveis. Com a idade, pode ser que melhore.