Uma puta e um padre.
Michel Piccoli abre a sua bíblia; grande plano da bíblia com formigas nas suas páginas (blasfémia alert!); raccord: grande plano de uma caixa de jóias a ser aberta. E em meia dúzia de segundos e num par de planos fica estabelecida a dualidade eterna do ser humano, entre o sagrado e o profano, a compaixão e o egoísmo, a alma e o corpo, a humildade e o Miguel Cadilhe. Um raccord que resume, de forma económica e sem paliativos, a divisão em duas partes de La Mort en ce jardin, uma em que cada um tenta obter o melhor para si na civilização, onde o cinismo dita lei (Simone Signoret, estátua para ela), e outra em que, reduzidas as máscaras quotidianas e aumentados os mais básicos instintos de sobrevivência, se constrói uma entreajuda salvadora (?) numa luxuriante floresta tropical. Charles Vardel, encostado a um tronco, tenta acender um cigarro, mas a chuva não lho permite: não há hipóteses de acessórios burgueses quando o que importa é ter comida na boca. Só numa filmografia como a de Buñuel é que La Mort en ce jardin pode passar por quase nota de rodapé.