É do mais elementar senso-comum que quando se apanha um monstro de vinte metros à frente, a primeira coisa que se faz é agarrar na câmara e apontá-la na direcção do senhor, de preferência com a possibilidade de construir um "bom enquadramento", como diriam uns certos professores de merda que conheço. Foi, obviamente, o que eu fiz numa certa ocasião, tendo desprezado coisas triviais como saúde física e vida em prol de um bem maior: um enquadramento bonito de um mostrengo. Estava eu na Avenida das Índias, num tórrido dia de chuva, a elaborar umas repérages para um documentário sobre um tipo que estava na Avenida das Índias a elaborar repérages para um documentário, quando, vindo do Terreiro do Paço, ouço um estouro muito forte e de seguida o elevar de fumaça, com gritaria como fundo sonoro. " Ou foi a extrema-esquerda, ou foi a extrema-direita, ou finalmente os islâmicos se dignificaram a chegar cá", pensei, enquanto corria para o local do acidente com o peso de uma mini dv na mão e uma mochila nas costas. Felizmente, andava sempre preparado para uma ocasião destas, e se os meus pressupostos estivessem correctos, nada mal me aconteceria, pois na mochila levava: um disco do Fausto dos anos setenta, mais um livro de poemas do Ary Dos Santos e ainda uma bandeira israelita e uma caixa de fósforos; o Triumph des Willens, uma colectânea de textos de Ezra Pound e Heidegger, uma bandeira israelita e uma caixa de fósforos; um autógrafo do Tarik Sektioui, um fio de cabelo do Rushdie e a bandeira israelita mais uma caixa de fósforos. Com a língua de lado, corria contra a abrasadora precipitação, até que quando já estava no Cais do Sodré, o Alexandre Valente começa a correr ao meu lado, de tronco nu e a comer uma chouriça. Olhei em volta mas não vi nem o Breyner nem aquele par de mamas com um bocado de carne atrelado, vulgo Cláudia Vieira. Ui mãe, dizia ele, com a boca repleta de chouriçada, espero bem que estejam por lá muitas miúdas com as roupas rasgadas pela explosão. Mais mamalhal, caralho!, gritava, com a baba a escorrer pelo corpo e para cima do chouriço, que logo o levava à boca, cuspindo para o chão o que não gostava, todo um espectáculo de nojo que me fez vomitar já estávamos quase a atingir o local do acidente. Foi então que vi o adamastor de vinte metros, a cuspir a estátua do D. José para cima das duas colunas , que mais uma vez voltariam a obras, e um espectáculo de horror por toda a praça: Dr. Vasco e Dr. Rui Ramos agarrados um ao outro, roupas poeirentas, chorando ajoelhados no chão e dizendo nesta praça só acontecem desgraças!, a cabeça de João Moutinho separada do corpo, o que me levou a considerar que talvez desta vez o tivessem mesmo morto, e dezenas de pilhas e pilhas de cadáveres, o que só demonstrava a eficácia e rapidez dos serviços municipalizados. Concentradíssimo na minha tarefa, comecei a filmar o animal, que subia pelas pernas do monstro com a chouriça pendurada num canto da boca; ia de forma lenta, o que me permitia fazer um tilt muito bem composto e sem muita tremideira. Abrindo a bocarra do gigante, que parecia divertido com aquele aparato, o Valente perguntou para as entranhas do mesmo se HÁ POR AQUI MAMALHAL?. O Valente não mais se viu, e a seguir seria a minha vez de ser caçado pelo mastodonte, com a minha última visão a recair no Dr. Ramos a dizer ao Dr. Vasco "agora eu faço de Rei, tá bem amor?". Perdido nas vísceras da criatura, dei de encontro com o Alexandre, que me perguntava, enquanto vasculhava a tripa alheia, se não tinha visto mamalhal e o Pedro Lima por aí. Disse-lhe que não, mas que ainda nos faltava ir ao intestino grosso. Demos um abraço sentido e partimos em busca dos preciosos artefactos. Ainda hoje o fazemos.
Bazin a cuspir terra no túmulo, Godard a fazer uma doube bill Schindler's List/Munich, Picolli ganha cabelo: Cloverfield foi o número três para os Cahiers de 2008. Não faço a mínima ideia do porquê deste delírio da prestigiada revista para com o filme de Matt Reeves, mas tenho a mais leve suspeita da principal razão que me levou a gostar dele: um monstro numa cidade (ainda por cima Nova Iorque), tão simples quanto isso. Os meus graus de exigência para com filmes de monstros são baixos, e se ainda por cima eles vêm sob o registo reportagem filmada, então a escassa resistência que ofereço esvanece-se de vez. Obra dos tempos modernos, essa da obsessão e vício em registar tudo o que aparece no campo de visão, tem um problema de verosimilhança (por vezes o monstro desaparece assim sem mais nem menos da acção, num espaço e tempo bastante reduzidos: será que foi dormir? jogar uma sueca?) e um desejo de contar uma história de amor maior que a vida que descamba para os clichés do costume, embora com uma intensidade dramática sempre interessante. Mas os seus primeiros trinta, quarenta minutos, onde primeiro passa nada e depois passa tudo, agradaram-me pelo contraste absoluto entre a captação de banalidades e a filmagem de visceralidades do extraodinário num mundo bem real; e como Reeves sabe uma das regras cinematográficas, o outro está sempre além, fora de campo ou desfocado.