Emule, uma benção cultural.
O cinema africano tem tido tanta divulgação nas telas portuguesas que não posso deixar de experienciar sentimentos de culpa pelo oportunismo de escrever umas poucas linhas sobre um grandioso filme de Ousmane Sembene, por sinal o primeiro do continente-mãe em língua nativa. Uma crónica em forma de périplo do individual esmagado pela corrupção, burocracia e pela cunha generalizada de uma sociedade senegalesa que levaria Maquiavel a esconder-se numa das grutas de Mira D' Aire (ipsis verbis, para vivermos neste país temos de nos tornar ladrões, diz uma personagem de Mandabi). Cinema desavergonhadamente político, ou não fosse Sembene o sócio 7347 do Comité Central, mas que resiste até ao último par de minutos a forçar o óbvio para cima do espectador, preferindo antes disso a imposição de um ponto de vista "objectivo" sobre a degradação económica e logo moral de um país, assente numa série de situações tão trágicas quanto burlescas de um homem que tenta levantar uma determinada quantia de dinheiro enviada pelo sobrinho de Paris e que só encontra empecilhos e canções do bandido na sua caminhada. Lembrei-me de Kiarostami (também pela poeira nas estradas) pelo facto de o recurso ao picaresco servir como constatação de um mosaico global sobre um determinado tempo e espaço, sem dramalhização gordurosa. Filme total: simples, a direito, complexo e, valha-me Deus, Popular ( o P é propositado) sem corantes, conservantes e escumalha ( antes que me acusem de difamação, esclareço que isto não é uma opinião, mas um facto) da TVI.