A introdução de Louisiana Story antevê a entrada num universo de profundo lirismo, que, infelizmente, não se cumpre na totalidade. Um lago, um miúdo num bote, o reino animal em planos expressionistas, e uma narração evocativa: é uma sequência panteísta ao nível do melhor Flaherty anterior, de Night of the Hunter ou de quase todo o Malick. Mas como este filme (o último do cineasta) foi uma encomenda de uma companhia petrolífera, o que se segue é um programa a cumprir, uma ode (com uma candura insustentável para este século) à coabitação maravilhosa entre a solene Natureza e a Máquina do século XX. A instalação de uma refinaria perspectivada pelo olhar infantil, e os construtores são todos simpáticos, e o menino fica deslumbrado com a tecnologia emergente, e o menino salva o empreendimento com os seus amuletos da sorte, e não tarda nada tenho de ir buscar um kleenex. A total ingenuidade é salva pelos momentos hipnóticos do funcionamento das máquinas e pelo ocasional regresso às vicissitudes da selvajaria; na memória permanecerão aqueles minutos iniciais.
Parece que também existia um "programa a cumprir" em ABC Africa: um documentário sobre a problemática da SIDA nos milhões de crianças do Uganda. Um mau realizador (ou ainda pior, um Moore) traria do seu local burguês uma caixa repleta de violinos e não se coibiria de gritar de megafone em punho Ocidente, vê isto! É gravíssimo! Vamos já organizar um mega-concerto de solidariedade, com o Bono e a Beyoncé e a "artista conceptual". Para nosso descanso, um indivíduo chamado Kiarostami foi encarregue de trazer até nós as imagens da catástrofe africana. E se essa vertente didáctica e literal do tema está presente (horror- um corpo de uma criança embrulhado em pano e caixote a ser levado de bicicleta para nenhures), a maior parte da obra trabalha sobre...a rodagem da própria obra. Abbas e o seu cameraman munidos de Mini DV's e a filmarem praticamente tudo o que apareça no enquadramento: crianças e mais crianças a saltar e a cantar, barbearias, danças locais, mais crianças a saltar e a dançar, os inevitáveis longos planos dentro de uma carrinha, nuvens, asfalto, mercados de legumes; os brutos que deveriam ter ido para o lixo foram os que permaneceram na montagem final. Quando, numa sequência prodigiosa de escuridão e relampejos de luz (a lembrar o último plano de O Sabor da Cereja-descontada a fanfarra digital), Kiarostami e o seu colegam sobem as escadas do hotel, no negrume e com pitadas de non-sense, para encontrarem os seus quartos, perguntamo-nos se o cineasta não sabotou de vez o seu projecto e se ainda sabe o que o levou àquele país. A resposta está no final, um daqueles últimos planos de rebentar o coração de que o iraniano se tornou mestre. ABC Africa é muito mais uma celebração dos vivos do que uma elegia pelos mortos.