22/06/2009

ah!, a aldeia, o ar livre, os passarinhos...


A versão sonora de City Girl, penúltima obra-prima de Murnau, está perdida para todo o sempre. Agora era o momento para o cinéfilo se queixar, clamando contra a vida injusta e madrasta para os génios, queixando-se de uma sociedade que tanto permite o desaparecimento de umas dezenas de filmes do Mizoguchi como o impedimento do Fernando Fragata de viajar até Guantánamo, por actividades cómico-terroristas audiovisuais. Ainda bem que está perdida, e espero que jamais a encontrem, e se a encontrarem, que a utilizem para reciclar. Não sei o que poderia acrescentar/complementar ao sublime silêncio desta obra, uma das últimas grandes do mudo. Começa com uma citação a Sunrise ("o mais belo filme de sempre", afirmação com toneladas de instituição em cima, hoje proferida com a mesma convicção de "o planeta Terra faz parte do Sistema Solar"), mas desta vez não não há dicotomia possível entre a santa pureza do rural e a corrupção moral da vil cidade; é porcaria humana por tudo quanto é sítio, dilacerando a comunhão matrimonial entre Charles Farrel e Mary Duncan (o mesmo par do magnífico The River, de Borzage, outro dos "mais belos filmes de sempre"). Ao chavascal do restaurante citadino, com os seus fumos e carcaças machistas empilhadas umas em cima das outras nos balcões, corresponde a rugosidade dos agriculturos na terrinha, homens que não vêm uma mulher jeitosa há cerca de duzentos anos. O alemão constrói uma dramaturgia pura, baseada nos mais simples contrastes das emoções humanas, bem exemplificada numa dezena de minutos de pasmoso rigor visual, desde a sequência em que os pombinhos correm por campos de trigo (quero libertar o cinema do palco e do mundo) até ao momento em que Duncan se confronta com o pai de Farrel; em pouco tempo, viajou-se de um espectro ao outro da dimensão humana, com um punhado de folhas a simbolizarem essa mesma viagem. Pondo as coisas em pratos limpos: City Girl é de uma devastação emocional que porá a chorar o José Mourinho. Dois anos depois, morria o seu criador, adequadamente numa altura em que a sofisticação do mundo batia as botas. O cinema tinha acabado, segundo nos reportou na altura Alberto Seixas Santos.
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