Once upon a time, Roger Ebert escreveu que só mesmo no final de Cet obscur object du désir é que tinha notado que havia duas actrizes. Imaginemos, em abstracto, uma pessoa míope, com um olho tapado e o outro cheio de lêndias; em abstracto, eu. Mesmo nestas condições, o processamento cerebral que permite distinguir duas entidades distintas entraria em acção, e, portanto, jamais se poderia sequer conceber a hipótese da Conchita do filme de Buñuel ser interpretada pela "mesma actriz". Suponho que Ebert estaria ou drogado ou bêbado (perfeitamente possível para quem apresentava um programa televisivo em que as críticas eram rematadas com um polegar para cima ou para baixo), pois as diferenças entre Carole Bouquet e Angela Molina são abissais. Ambas interpretam uma espanholita mocita, mas Bouquet tem tanto de Espanha no sangue como eu tenho de benfiquismo; olhar glacial, distante, de uma perversa elegância, passaria mais facilmente como fêmea dos fiordes. Molina é uma Conchita "pura", extrovertida e fingida, e obviamente só ela poderia ter o costume de sevilhana no corpo e as castanholas na mão. Ebert, recomendo-te o Dr. Quintais; diz-lhe que vais da minha parte para obteres desconto. Ah, o filme é uma obra-prima, mas isso é chover no molhado.
Ui, a (tal) Soraia Chaves. Ui Jesus, que femme fatale de Carcavelos (a culpa não é tua, filha). Bom, eu queria era fazer uma tese de Mestrado sobre a belíssima Zoe Lund do extraodinário Ms. 45 de Ferrara, mas, para além da falta de categoria, teria de ouvir os depoimentos de Maria Velho da Costa, Laura Mulvey, do esqueleto da Sontag (nome mágico para engates de raparigas com meias ás cores) e da Ana Zanatti, e eu gosto é disto. Que espantosa personagem; a maravilha começa logo pela genial ideia de a tornar muda, um pormenor que evita desde logo a ganga palavrosa e redundante da vingança, e simultaneamente inscreve em Lund uma aura robótica e exterminadora, um "atira neles" sem pinga de hesitação e envolto em batôn e meias de rede; digníssima representante dos justiceiros solitários cinematográficos. Era matá-los a todos. O contraste entre o mutismo gélido de Zoe e o mundo promíscuo e corrupto que a rodeia (exemplar sequência final, anos setenta a transbordar do enquadramento) só torna a experiência mais marcante. Agora que Herzog (esse senhor Ferrari ou lá o que é...) prepara o remake de Bad Lieutenant, e a caminho também vem a "modernização" do caótico The Driller Killer, resta-me socorrer do baptismo, da comunhão, do crisma e dessas merdas todas para que o Senhor não providencie ao destino a "actualização" desta obra.