14/06/2009

escândalo é darem 18 milhões pelo (pobre) circo Quaresma



Estou(ive) a teclar isto numa esplanada. A três metros da minha pessoa, um (presumível) casal típico da linha: andam nos quarentas e picos, estão bronzeados, ele a ler o i, ela loura pintada e a fumar, de vestido branco com o bikini a ressaltar à vista; fartas mamas. Vão para casa tomar banho e depois vão para o BBC. Atrás deles, um casal nos mesmos quarenta e picos, mas de corpos e andrajos mais modestos: ele sorve caracóis (a empregada acaba de me perguntar se eu já pedi: já já. Estive dez minutos à espera. Tenho areia no bigode. O colega acaba de me trazer o café e a imperial.), ela lambuza um gelado. Vou parar de escrever para beber o café e fumar o cigarro. Já volto. Música de elevador. Voltei. Enquanto fumava, sentou-se à minha frente uma numerosa família; pelo que vejo, esqueceram-se da avó e dos gatos. A empregada mostra-lhes a ementa. Olho disfarçadamente, que isto é trabalho tão perigoso quanto inútil. Na aparelhagem sonora, a Patiente dos Guns, uma das melhores de sempre. A Coca-Cola, essa água imperialista (sic), está óptima. O casal bronzeado está a falar mas as ondas e os 70 db de ruído não me deixam ouvir. Lady Gaga na aparelhagem: vale cinquenta Madonnas (artista conceptual, para os amigos). Vejo um sinal: não se podem trazer cães. Trouxeram Cocas, Pepsis e Fantas para a família da frente. Agora toalha de mesa; também vão comer. O rabo da empregada, neste momento, está a cinquenta centímetros da minha cara, e não é nada de especial. As pessoas vão abandonando o areal, a maré vai subindo, e no horizonte marítimo um cruzeiro parte, recheado de velhos monárquicos. Pergunto-me se esta gente já se perguntou sobre o que é que eu estou a escrever. Está a ficar frio. Olhei para trás e vi uma moça com tamancos a ler o Equador e a mascar pastilha. Sai um hotdog para um indivíduo da frente. Os bronzeados, ouvintes de Michael Bolton e fãs de Stephen Daldry, vão-se. Mais um batido para a família. Era isto o que eu tinha a escrever sobre o pior filme que vi este ano. Vou-me levantar e vou-me embora.

Antes de se tornar especialista em mamutes cinematográficos, David Lean fazia filmes. Isto que eu acabo de escrever é uma gratuita provocação, pois da fase de prestígio institucional (algures a partir de A Ponte do Rio Kwai, talvez) de David eu só vi o Passage to India, aos treze anos, e lembro-me que quando acordei o Jaime Magalhães tinha acabado de concretizar o 4-0 contra o Sion, na segunda mão da segunda eliminatória da verdadeira Taça dos Campeões Europeus, época 1992/93; mas eu tenho óculos e já entrei na Cinemateca com os Cahiers debaixo do braço, tão suficientemente escondidos para não alardear bazófia como suficientemente à vista para demonstrar "conhecimento": equilíbrio pericilitante, lembro-me. Brief Encounter é muito bom. Faz da apropriação e da concentração de um local uma magnífica personagem e possui um uso do campo/contracampo que deixa respirar os estados de alma dos personagens. E aquela incessante narração off, em vez de sobrecarregar as imagens, transmite-lhes sentimento evanescente e onírico, captando na perfeição a transitoriedade do "tema". E a sua curta duração está de acordo com a modéstia do que é filmado. As histórias do amor já não se fazem assim. Espera-se a todo o instante o remake de Kar Wai, com menos nevoeiro e mais saltos altos.
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