02/07/2009

Dia Monteiro-5

[...]. O maneirismo é uma crise de forma. Sendo um formalismo, é uma crise de forma. Porque a forma é feita a partir de formas pré-existentes e, durante algum tempo, andou-se muito nisso. É muito sintomático no cinema americano, que é um cinema muito do reciclado. Recicla-se o cinema como se reciclam os sacos de plástico. Por exemplo, fazem-se "Batmans" intelectualistas, sem a ingenuidade, a espontaneidade dos primeiros. É um universitário qualquer que resolve pegar numa coisa que faz parte do imaginário popular e introduz-lhe umas notas de problemática intelectualóide. O telefilme são os códigos televisivos, de agrado imediato, porque o que interessa é fazer passar uma história. É o primado do argumento. Os resultados são sempre idênticos. Mas há distinções. Há uma estética Channel Four, até há duas: é uma coisa equívoca que parte da crítica (desta mais apressada) supôs ser o renascimento do cinema britânico, o que é absurdo. Absurdo porque uma coisa que nunca nasceu não pode nunca ter renascido. Não há cinema inglês. O Powell e o Hitchcock são excepções.

Mas define lá a estética Channel.

O que é a estética Channel Four (a melhor?). Argumento bem feito, linear, bem construído, bem fotografado, bons actores. Logo, à partida, uma coisa segura não tem risco. Tudo mais ou menos igual, com uma forte componente social, muito reaccionária. São coisas que incidem muito sobre os conflitos da sociedade inglesa. E não é por acaso que isto coincide com o thatcherismo: embora fale do desemprego e denuncie de algum modo as mazelas da sociedade britânica, funciona como sucedâneo. O operariado britânico revê-se - fica a ver-se diante do ecrã. Assiste, é espectador do simulacro do seu drama social e esquece uma coisa fundamental que é vir para a rua: as "manifes" acabaram, graças à televisão. Esta é uma das componentes, a vertente social do Channel Four. A outra é a vertente estética, que dá os Greenaway e dá os Jarmans e essa coisa toda. É a estética bicharoca. Isto o melhor dos exemplos. Depois, há as televisões europeias que não fazem tão bem. Aquilo é tudo coxo, mais ou menos, mas têm os códigos narrativos sempre idênticos: não há violência nenhuma (violência é violar códigos). Há é o espectáculo da violência, que é outra coisa. Pronto, aquilo segue tudo mais ou menos a continuidade americana adaptada ao ecrãzinho, com planos próximos. Isto são os telefilmes. Em Portugal, como temos, felizmente - repito - a televisão mais estúpida do mundo, a mais atrasada, é possível fazer umas coisas, trabalhar nos interstícios do poder, trabalhar contra os Fernando Lopes - é preciso dizê-lo - e contra os funcionários da televisão . Por exemplo, este filme ( ndr: O Último Mergulho): como já tive o prazer de ver a cara do director do Festival de Veneza, que eu sabia à partida qual era, quero ver a carinha do sr. Ricardo Nogueira e do sr. Moniz. E do sr. Lopes - porque não? O sr. Lopes, entendido de maneira dúplice. Porque há o Lopes, cineasta porreiro, amigo, etc., de palmadinhas nas costas, e há o Lopes, funcionário da televisão, que tem que dar contas aos patrões. Gostava de saber qual dos dois Lopes vou apanhar.

Ainda não falaste do audiovisual...

O audiovisual é aquela coisa que ninguém sabe o que é, nem o próprio secretário. O secretário sabe uma coisa: é que, para que aquilo funcione (sem ir buscar dinheiro do IPC), precisa de uma subvenção da ordem dos quatro milhões de contos, o que é bom para ele. Mas suponho que o Cavaco não tem essa massa. Gostaria de ter, mas não tem, nem vai ter, porque vamos todos, agora, ter que apertar um bocadinho o cinto. Como andámos, durante os últimos anos, a viver à custa dos fundos comunitários, agora é assim. Porque neste país não se cria riqueza, parasitam-se os fundos comunitários. Agora vou-me rir, mas há seguramente muita gente que não se vai rir: os mesmos, os do costume, quando tiverem que apertar o cintinho. Porque, como é evidente, isto vai recair sobre a maralha - a população portuguesa. E sempre mais sobre uns do que sobre outros. A história é conhecida. Ora o Vasconcelos - pessoa que, aliás, eu muito estimo - tem um sonho na vida: ganhar muito dinheiro. Género: "Como é que a gente vai engenhocar uma coisa para eu me vestir de alto a baixo nos Versace, nos Pollini, nos Armani?" Isto é: "Como é que vou comprar as minhas brutas fatiotas e vestir-me como nenhum italiano se veste, a peso de ouro? Como é que eu vou andar com roupinhas na ordem dos milhares de contos e não só roupinhas...?" Então, ele teve a ideia do Audiovisual. Mas como o Cavaco gosta de dar, mas não vai poder dar-lhe a massa, a pergunta que eu faço é esta: "O Vasconcelos não ganharia mais como pessoa honesta? Com um bocadinho de trabalho, não seria mais rentável?".

Excerto de uma entrevista prestada a Rodrigues da Silva, in Jornal de Letras, 22 de Setembro de 1992.
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