29/12/2009

o cachimbo.


Não ter ido ao cinema ver Inglorious Basterds foi uma das decisões acertadas de 2009. Aliás, não ter ido muito ao cinema, em 2009, constituiu-se como uma escolha acertadíssima. Os meus cada vez mais baixos índices de tolerância para com telemóveis coloridos, gargalhadas alarves fora de contexto, sussurros incomodativos e pipocas barulhentas superam em larga escala a "magia da tela", que mesmo assim ainda lá vai resistindo aos golpes alheios, como na projecção do Public Enemies, em que uma mulher, em vez de estar a realizar tarefas construtivas, como lavar o chão de casa, fazer cachecóis para os sobrinhos ou lavar a louça, preferiu desperdiçar o seu tempo e a minha paciência a mexer com esmero nas chaves do carro ou da casa. E depois admiram-se que existam assassínios em massa. Por tudo isto, contribuo cada vez mais para as economias da pirataria, ora sacando filmes ora comprando cópias em óptimo estado ao meu cigano de confiança. Perdem-se a "magia da tela" e a "pureza" da cinefilia, mas ganha-se sossego e concentração, até porque não estou a ficar mais novo. Já referi a "magia da tela"? Ah sim, vejo que já. E agora, a insídia. Foi a ver aquele diálogo entre o De Niro e o Pesci, no Raging Bull, em que o primeiro tece uma teia à volta do segundo para perceber se este tinha ou não fodido a sua mulher, que eu dei por mim a pensar "epá, isto do cinema é capaz de ser fixe". A arte da insídia, da tortura psicológica, do verbo e dos gestos como armas estratégicas para se obter o que se pretende, é uma das grandes alavancas dramáticas que um filme pode ter, e a técnica primordial para o efeito desejado é ter a câmara o mais repousada possível, só a movendo ligeiramente no caso imprescindível de ter que se revelar elementos essenciais à sequência, como por exemplo uns judeus escondidos numa cave. Os trejeitos afectados de Christoph Waltz nos primeiros vinte minutos de Inglorious Basterds (ou mais tarde, na cena do strudel, em que como bónus se ensina aos clientes do Eleven de como se deve comer), uma afabilidade que aterroriza devido ao conhecimento que o espectador tem daquela farda, e que conjugada com a minúcia burocrática com que dispõe papéis e molha a caneta no tinteiro, torna toda a sequência um exemplar quase-perfeito na grandiosa arte da insídia. E o momento em que apresenta o seu fantasioso cachimbo é a mais singular demonstração de Poder de que me lembro em pelo menos uma semana. Ora, toda esta tensão construída à base do esqueleto da palavra (implacável, a milhas da pífia e insuportável verborreia das galinhas da segunda parte do Death Proof), da expressão corporal e do SOM requer silêncio, recato e ambiente de mosteiro. Duvido, portanto, que face à luta efectuada por uma horda de pitas, pitos e de enfastiados casais de classe média , a "magia da tela" conseguisse prevalecer com toda a sua "força". Gosto tanto da expressão "a magia da tela"; melhor só mesmo "a magia do cinema".
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