08/01/2010

elementar, caro Doyle.


Ir ao cinema ver um "filme" do Guy Ritchie encontra-se numa vasta lista de acontecimentos a que, eufemisticamente, daríamos o nome de "apocalipses civilizacionais", como o sejam, entre outros, assistir a um concerto da anterior esposa do senhor Ritchie, ver o Jaime Gama nú ou o Benfica ganhar a Liga dos Campeões. No entanto, sem arrependimentos darei 2.5 euros (se entretanto o preço não aumentar) ao cigano de confiança quando ele por lá tiver o Sherlock Holmes, e isto explica-se pelo que se segue. Aqui há pouco mais de um mês, e durante duas semanas, a convalescença obrigou-me a cirandar por casa em pijama, e num desses dias de pijama lembrei-me que havia uma prateleira na sala e que nessa prateleira havia livros. Depois de a examinar durante algum tempo, calhou-me encontrar o Ulysses, numa edição de 1982, e que pesa cerca de dois quilos, algo que pude confirmar agora mesmo, já que a seguir a "cerca de" fui colocar o livro em cima da balança da casa de banho. Uma edição da qual eu tinha lido quinze ou vinte páginas há alguns anos, uma tortura inesquecível e só comparável a visionar o O Preço Certo em Dolby Surround. Mas lá estava eu com o Ulysses na mão, por entre suores frios que já nem sabia se eram derivados da doença ou de ter aquilo a menos de um metro de distância, quando dou por mim a encontrar a salvação numa colecção "Sherlock Holmes" cuidadosamente empilhada. Como foi ali parar, não sei, como também desconheço qual o jornal/revista que a distribuiu. Esta colecção contém todos os contos de Holmes, e ainda o romance O Signo dos Quatro. Por entre chás baratuchos do Pingo Doce tudo foi lido e tudo foi revisto, e daí que eu possa concluir, neste momento, e após essa sistematização de quinze dias, que este que vos escreve é já uma das luminárias mundiais no estudo dos livros de Doyle, estando para breve a realização de uma monografia gigantesca a respeito de Holmes e Watson, com prefácio do Professor João Barrento, a qual será entendida com o recurso a escassos cinco dicionários de criptografia internacional. Um dos temas dessa grande obra em perspectiva será o da fórmula Doyle, que muito vagamente se apresenta assim: a) Watson, na casa de Baker Street, divaga sobre o nevoeiro ou o frio de Londres ou relembra um episódio antigo com o seu amigo. b) Uma pessoa entra nos aposentos de Baker Street e expõe um problema para Holmes, com Watson respeitosamente a ouvir. c) Holmes ouve com os olhos fechados, mãos entrelaçadas no peito e cabeça recostada no banco. d) Iniciam-se as investigações. e) Holmes descobre tudo mas não conta nada a Watson, aguardando o gran finale. f) Holmes envia uma carta ao culpado, que se apresenta em Baker Street para contar a sua perspectiva. g) Watson siderado com os procedimentos do amigo. Outros procedimentos habituais: A Scotland Yard resume-se a imbecis, com o inspector Lestrade como cabecilha número um; Holmes a mandar às urtigas o caso e a preferir levar a cabo experiências químicas, para arejar a mente e ganhar distanciação; Holmes com mil disfarces; Watson sempre atrasado; Holmes consegue descortinar o passado de uma pessoa apenas olhando para as calças na zona dos joelhos; Holmes a dizer a Watson "leve o seu revólver"; Holmes (Doyle) a zurzir em Watson (Doyle) por este popularizar em tons romanescos a suas prodigiosas acções cognitivas, de pura dedução; Holmes a beber vinho ou a fumar cachimbo; Holmes a elogiar o irmão, que só não é o maior detective do mundo porque não quer levantar o cu da secretária; Holmes educado para as senhoras, mas a cagar-se para os seus encantos. E por aí. E o que tem a ver o Sherlock Holmes do Ritchie com isto? Por alguma surpresa na surpresa que se apoderou de alguma gente que por aí li, espantadas com a "fisicalização" da personagem, interpretada pelo actor que tornou arte o "estou-me cagando" de Vilarinho. Ora, Holmes é alguém que equilibra com absoluta precisão os dados de dedução mental com o seu poderio físico, e se for preciso andar ao murro, correr na lama, ou andar desvairado em cima de um cavalo, ele fá-lo. Bem longe, portanto, de uma certa ideia de personagem constantemente plácida nos seus pensamentos, de rosto austero e de cachimbo na boca, só faltando a mantinha em cima das pernas. Se o Downey Jr. apalhaçou a personagem, nada que espante: é apenas a explicitação de algo que já lá estava, e muitas das buscas in loco protagonizadas por Holmes estão bem mais perto do Ichabod Crane de Johnny Depp do que dos sisudos e "profundos" polícias do horrorroso CSI. Quanto ao Ulysses, só quando recorrer aos psicotrópicos.
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