11/05/2010

Kiss Me Deadly e Pale Flower: filmes de cinema.



A meio de Kiss Me Deadly, Mike Hammer (Ralph Meeker), no seu descapotável de luxo, entra numa residência de luxo, equipada com frondosos jardins de luxo, piscina de luxo e mulheres de luxo. Mal Hammer abre a porta do carro para sair, aparece do nada uma das tais mulheres de luxo e começa-o a beijar, para seu grande agrado. Se o espectador, à la Last Action Hero, tivesse a oportunidade de entrar no filme e Meeker lhe dissesse que não, isto não é um filme, isto é the real stuff, então esta cena seria o motivo perfeito para lhe partir a argumentação ao meio: então tu entras numa casa e mal abres a porta do carro aparece uma boazona loura que te começa a falar mansinho e a dar beijinhos? Achas isto normal? Um dos vários exemplos de uma obra intoxicada pelo artifício do cinema, suficiente para deixar para terceiro plano as tangentes à realidade e a um "tema" "importante", o que aliás é apanágio do mais onírico (e mais realista?) dos géneros, o noir. As personagens (talvez com excepção da principal) falam e movem-se afectadamente, não há normalidade (a começar no genérico e passando pelos ângulos oblíquos), e no fim o destino do mundo pode-se encontrar nas mãos de uma atrasadinha mental. Abaixo a realidade, se faz favor.

Pale Flower, de Masahiro Shinoda, é mais um dos espécimens de filmes que vivem no cinema. Na linha da pop art desbragada do Seijun Suzuki, também há descapotáveis, japonesas de luxo, muita elegância e grandiosas auto-estradas. E para além do niilismo da reflexão contemporânea sobre a grande cidade e o isolamento que nela se encontra, há o prazer do cinema pelo cinema: exacto, gangsters de óculos escuros com sonhos em slow motion e que se passeiam em descapotáveis com japonesas de luxo por cima de grandiosas auto-estradas. Tudo isto funciona como se Antonioni emigrasse para terras do oriente e tivesse como função fazer a sua versão de filme de género. E por mais diferenças que se possam encontrar entre a obra de Aldrich e Pale Flower, há sempre um elemento em comum: a coexistência pacifica entre grande e piquena cultura. Já Max Monteiro colocava o bacalhau do Barreiros a conviver com Mozart. Outros, como um filho da punheta dinamarquês que eu cá conheço, fazem apenas grande arte com grande cultura musical. Abaixo a realidade, se faz favor.
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