Uma das mais fascinantes particularidades do cinema é tornar-nos próximos de indivíduos que na vida real nos provocariam, no mínimo, um ataque de ranho. Tomemos como exemplo François Mauge, personagem principal de Sauvage Innocence, de Philippe Garrel, e que me traz à memória um sketch dos Gato Fedorento pré-pimba, um em que o Quintela entrevista o Araújo Pereira, perguntando-lhe se ele é mesmo poeta, ao que o Araújo Pereira, afectadissimo, responde: Claro. Repare, tenho uma boina. Como inspiração poderíamos perguntar a Mauge se ele é mesmo um "jeune cineaste com aspirações artisticas". Claro. Repare no sobretudo coçado, no cabelo cuidadosamente desalinhado, no meu ar enfastiado. Mas é mesmo? Então, mas duvida? Não vê, arrojadas aos meus joelhos, as jovens de meias ás cores, de flor no cabelo, e de sapatos de fivela, e que se masturbam a ver o The Dreamers e que suspiram de desgosto por não terem presenciado in loco o Maio de 68 (papá, papá, conta-me outra vez o Maio de 68! Outra vez? Sim! Pronto, pronto, senta-te no colo do papá. Então foi assim, havia uns bandidos...) ? Ah bom, sendo assim. Para suportar, num filme, um gajo assim, é preciso que à sua volta haja algum cinema, e Sauvage Innocence tem mais do que algum cinema, possuindo uma visão ácida e irónica sobre a relação sempre fértil entre as liberdades criativas e o mundo cão da vida real, tudo imbuído daquilo que eu gosto: pessoas a comer e a beber com gusto, silêncio para ouvir o timbre de cada palavra, aroma a melancolia, e uma jovem que levaria uma foda numa convenção nacional do BE. Poder-lhe-ia recitar, enquanto a canzenava, as minhas memórias de um outro Maio, o de 1987. A Nouvelle Vague é tã linda.
Se, por qualquer acidente, o leitor ou leitora (que certamente lerá estes posts munida apenas de lingerie e gag ball) é um/a "jeune cineaste com aspirações artisticas", então, para além dos imprescindíveis considerandos visuais, há que realizar uma outra tarefa: não ver, de jeito nenhum, coisas como The Devil's Rejects, de Rob Zombie, o grunho. Eis um filme que é uma preciosa e ilustrativa lição de como foder um filme com premissa apelativa. Câmara muito à mão porque sim, porque, afinal, estamos no Século XXI, banda sonora intrusiva como o Diabo, uma montagem parte-brita que consegue a rica proeza de não estabelecer o mínimo de emoção ao todo, e como cereja no topo da porcaria, um climax a transpirar audiovisual moderno por todo o lado, uma pretensa homenagem a Wild Bunch mas que no fundo não passa de algo feito por um sujeito que confunde tensão com ruído e lixeira musical, tudo ao monte, que assim é que é. Os correligionários da Série Z (aka série de filmes que podem ser nulidades absolutas pois ninguém pagará contas por isso) que me perdoem, mas isto é um cagalhão de todo o tamanho. Não é Peckinpah ou Tarantino quem quer. Mais, não é sequer Rodriguez quem pode. O Zombie que volte lá para as musiquetas do fuck the system e isso, ao mesmo tempo que paga um cheque de um milhão de dólares a um arquitecto para que este desenvolva o projecto da construção de uma fabulosa vivenda em Beverly Hills, ou seja lá onde o grunho vive.