Quando o escriba ainda frequentava as festarolas veraneantes da aldeia, um pouco de melancolia era o que sentia quando se retiravam os balões que enfeitavam as ruas ou se arrumavam as tábuas de madeira que haviam formado o palco onde dias antes grande nomes da chanson brejeira nacional haviam actuado. Tal é o travo amargo de Jour de fête, com aquele plano tristíssimo (apesar da música de brinquedo), depois de a arromba ter terminado, de um miúdo a correr atrás dos cavalinhos expostos na camioneta feirante. Tati, cineasta e antropólogo, retratista minucioso, mestre do detalhe social: os fatos domingueiros, a velhinha com a cabra na função de comadre comentadeira, o pormenor dos sapatos que apenas se usam em dia de festa e que magoam pa caralho, as aparências, a alegria sem preocupações da miudagem, etc; um sentido de comunidade e de laissez-passer em vias de extinção, pois em cada filme de Jacques parece sempre filmar-se o fim de algo. A máquina dos filmes posteriores espelhada nele próprio, em Tati-actor, um carteiro a ter de se adaptar à era da velocidade, tema para incontáveis prodígios de humor, como numa sequência nocturna repleta de indignação alimentada a conhaque. Ainda não havia Hulot (nem cachimbo, alegrem-se Goebbels da purificação), mas já havia génio.
29/04/2009
27/04/2009
ainda se fazem policiais?
Felizmente, nem só de vómitos e espiritualismos viveu a carreira de William Friedkin. Recorda-se aqui um dos seus melhores trabalhos, To Live and Die in L.A, policial musculado em que os polícias são tão corruptos quanto os criminosos e onde o beijo da morte é quase sempre desferido com uma bala nas fuças (anos oitenta e os seus Patrick Batemans, etc.). Obra por vezes graciosamente datada, com uma banda sonora de Wang Chung a transbordar de melodias da época, com a voz off de Ronald Reagan a sinalizar o ar do tempo logo na primeira sequência, e uma artesanal perseguição de automóvel que já não se faz, realizada à base de Stuntman Mikes entretanto desaparecidos. O all-power macho de William Petersen (visto a última vez a vender o coiro em csi's) e do comparsa John Pankow, a submissa carne para canhão feminina (muito levam elas neste filme, e quando não estão a levar estão a ser fodidas, e quando não estão a ser fodidas, servem como meros joguetes em jogos sujos), e entre estas regras de género bem delineadas a androgenia de William Dafoe, um artista da contrafacção, um Andy Warhol ainda mais oportunista mas sem a mesma legitimação cultural. Nesta Los Angeles desprovida de glamour e anjos, documentada por Robby Muller, só há uma certeza: não há nenhuma personagem que não esteja a fazer pela vida. Não há, sequer, lugar a uma tão cara e elogiada ambiguidade, não senhor, pois para Friedkin, neste mundo decadente, só cabem víboras. Nenhuma novidade no âmbito das transacções comerciais. Segue mais um tiro nos olhos.
24/04/2009
o demo não usa camisa
Supostamente para assustar, a aparição do mafarrico em The Devil Rides Out provoca uma reacção de compaixão; descamisado, magricela, mal parecendo saber onde se encontra, o sujeito parece ter feito uma viagem no tempo entre o Portugal da era Sócrates e a Inglaterra rural dos anos sessenta. As reuniões admnistrativas do BES devem, por certo, ser muito mais tenebrosas ao olhar humano. Terence Fisher, o ponta-de-lança dos estúdios Hammer durante uma vintena de anos, realizou um filme de terror onde Christopher Lee, para variar, defende o Bem e tenta destruir um culto satânico, liderado pelo melífluo Charles Gray. As virtudes desta obra encontram-se no que deveria ser um defeito, num camp delicioso que sobe aos céus da histeria cómica com o progressivo desenrolar do filme, em que, por exemplo, os tais doidivanas adoradores de satã se comportam como figurantes do Jesus Christ Superstar ou como divagadores febris num concerto de rockalhada, o que se calhar vai dar ao mesmo. Fé, cepticismo, dualidade razão vs superstição ou a subjectividade do que é o Mal são temas timidamente aflorados, estando a primazia no duelo entre duas mentes. O último acto é um triunfo de argumento, de efeitos especiais arcaicos e de Deus Nosso Senhor. Vale dez pretensiosos The Exorcist.
22/04/2009
agora todos juntos, de mão dada e em círculo (sem rir): "o tempo destrói tudo!"
Antepassadas inanidades có(s)micas no cinema2000:
-Grosseiro e maneirista filme de Gaspar Noé,realizador que se tem vindo a especializar em "filmes-chocantes".É um filme que irrita do primeiro ao último minuto.O caos emocional é estudado ao pormenor;tudo está cuidadosamente encenado,desembocando num todo ultra-pretensioso.É o estilo pelo estilo.A cena da violação provoca bocejos.Este filme assemelha-se àquelas maças bonitas e perfeitas por fora,mas com um conteúdo pobríssimo,podre,e a cheirar mal.Dá vontade de rebentar em insultos contra este filme.Mas n podemos cair na grosseria do senhor Noé...
Tiago Ribeiro 16/12/2002
A indignação com o que tinha acabado de ver era de tal ordem que a língua portuguesa apanhou por tabela, originando, até, o envio de um prestável e-mail por parte de um senhor versado em Camões, alertando-me para a existência da palavra "paupérrimo". Desde essa noite chuvosa (as noites, na literatura, são geralmente chuvosas; ventosas ocasionalmente, estelares raramente, solares nunca. Quando alguém começa uma frase com "Desde essa noite..." há 72% de possibilidades de ela ter sido chuvosa, mesmo que se esteja a descrever um episódio passado no Sahara. A verdade é que eu vi o filme numa tarde solarenga ( as tardes, na literatura, são geralmente...)) de Dezembro de 2002 que eu não atravancava o meu agastado olhar com as aventuras do senhor Noé nos domínios da "irreversibilidade". Graças à preciosa dvdteca fornecida pelo jornal do Marcelino, lá voltei a sujeitar-me ao dito dislate fílmico, antevendo desde logo o infinito escorrer de espuma pela boca. Mas dizem que a idade vai aplacando ódios e demais manifestações de diatribes (o que não é bem verdade: conheço uns quantos filhos de uma grandessíssima saca de putas que mereceriam levar com um extintor por aquelas cornaduras acima, seus filhos da puta fanáticos do caralho), e o que há sete anos foi motivo de profunda raiva foi há poucos dias razão para umas boas gargalhadas e sono à espreita. Começando pelo fim, a melhor coisinha: o genérico; estamos conversados. Depois, a hilaridade: dois rabetas com uma algarviada filosófica do reader's digest, mais paneleiragem explícita num bar apropriadamente chamado de "rectum", tudo delicadamente encafoado numa estética cinético-parkinsoniana, e com o som de baixa fidelidade a sugerir, segundo as palavras do Gaspar, "a desorientação do espectador"; eu, por mim, fico mais desorientado psicologicamente quando vejo o Guarin a dar um toque numa bola. Este histerismo formal, se na primeira vez ainda pode impressionar (positiva ou negativamente), numa outra visão é acção em ponto morto, que nem o grafismo da cena do extintor e a da "célebre" violação da Mónica conseguem atenuar. A partir da enrabadela, então, é o definitivo estouro do balão: a ligeiríssima tensão que Noé fabricou naqueles primeiros vinte minutos esvazia-se por completo, com uma progressiva suavização dramática, até acabar na mais insuportável das chantagens emocionais, a paz no mundo de Belucci e do seu filho (ohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...) ao som de Beethoven (alerta de caução). Fez-me lembrar o Psycho do Van Sant, em que, após o assassinato de Marion Crane, ficava-se com um saco cheio de nada e outro cheio de coisa nenhuma, precisamente o oposto do que acontecia no original. Mas nem tudo é negativo, pois a carga odiosa que antes sentia contra esta obra já foi curada com o tempo, pois o "tempo destrói tudo". Vai em paz, Irréversible. Ora deixa cá ver onde é que está o Dogville...
20/04/2009
quarenta destes
Com o poder de antecipação de um Sherlock Holmes e a determinação de um furioso defensor da lei, o fabuloso Kriminalkomissar Lohmann (Otto Wernicke) do Lang de M e de Das Testament des Dr. Mabuse não dá descanso à bandidagem do Império do Crime. No segundo filme, desesperado com o calculismo dos seus comparsas num tiroteio com três súbditos do Doutor que se encontram barricados no interior de uma casa, decide mandar às malvas o bom senso e sobe as escadas num frémito arrebatador, pondo fim à bagunça. O seu desvario pela ordem atinge o cume mais tarde, quando numa perseguição automobilística metralha impropérios contra a lentidão da maquineta onde viaja, de cabelos ao vento e tudo. A insidiosa maldade psicológica do Doutor só pode ser combatida por alguém no outro espectro da loucura. Se os taxistas e demais saudosistas tivessem conhecimento da figura, seria vê-los a gritar para as câmaras de tv: quarenta Lohmanns em cada esquina é que era!!. Com tanto zelo pelos valores democráticos já teria tido, certamente, um processo em cima dos costados. Do ecelentíssimo .
17/04/2009
Assinar:
Postagens (Atom)