30/06/2008

gelado #18



Primeiro, há que dizer que estou nu. Segundo: quando o leitor pensa em Singapura ( e não sei porque motivo o faria), que imagens e palavras povoam o seu cérebro? Não faço ideia, porque eu não sou o leitor. Mas sempre posso esclarecer as duas coisas que sei sobre o país asiático: levou um enxerto de ondas no Tsunami de 2004, e tem um realizador chamado Eric Khoo, que por sua vez tem um filme intitulado Be With Me, por sinal bastante interessante. Tendo como base a história de vida de Theresa Chan, que ficou cega e surda durante a adolescência, Be With Me entrelaça essa história com mais outras três, em que os pontos de contacto entre todas elas vão-se estabelecendo com o desenrolar do filme. Obra que faz um intensivo uso da elipse (a primeira meia hora limita-se à apresentação de sinais exteriores das personagens) e do silêncio como regras de ouro, Be With Me convida o espectador a preencher os buracos no puzzle narrativo, sem contudo se tornar num árido exercício formalista, até porque se alguma pecha este filme poderá ter, é o de possuir demasiado coração nalguns momentos, que melhor estariam se fossem tratados sem tantos rococós sentimentais. A sua singularidade reside na forma como escapa ao tenebroso caso da vida, e simultaneamente como apresenta uma visão do mundo e das relações amorosas que muito irritarão os cínicos e niilistas do nosso tempo. Junção periclitante de documentário e ficção, Be With Me esbate essa fronteira que cada vez faz menos sentido, e torna-se simplesmente num filme envolvente para quem tiver a paciência de lhe encontrar o âmago, frágil e delicado. De Singapura não nos chegam apenas desgraças.

Da fragilidade e delicadeza de Be With Me, para a violência sem analgésicos de Gespentser (pronuncia-se Gespeitzer, ou Gespentzâ, ou Gespitzâ, ou Gespeto; esclareçam com os entendidos), um filme onde há uma identidade enviada para o caixote do lixo, e isto é para levar à letra. Em comum com o trabalho de Khoo, há a recusa em dar a papinha na boca do espectador, demorando o seu tempo a estabelecer a sopa do argumento, para desespero dos escravos dos três actos. Digamos que há duas moças, uma discreta e outra acossada como um animal selvagem (ver foto), e um casal dilacerado por profundas feridas interiores, e a partir daqui desenha-se uma paisagem onde foram removidos conceitos como fé, esperança, ou optimismo; na locomotiva da Europa, há lugar para o abandono emocional. Num filme de não-ditos e de repressão de sentimentos, há um extraodinário momento de luz, uma confissão de um sonho durante um casting, mas Christian Petzold evita o caminho proposto por essa cena, até porque isto não é telenovela. Lacónico e enxuto de ganga acessória, Gespentser deverá ser certamente uma das coroas de glória do cinema alemão deste século, mais concretamente da Escola de Berlim, fornada de jovens cineastas a que eu tratarei de dar mais atenção. Como curiosidade, a co-autoria do argumento pertence a Harun Farocki, um dos segredos mais bem guardados do cinema tedeschi dos últimos quarenta anos.

26/06/2008

gelado #17


Sometimes received ideas become reinforced and cemented by being brought up repeatedly as critical short-hand. For example: Samuel Fuller's films are "primitive"; Lang is all about fate; Ozu celebrates quiet resignation, and keeps his camera low and static; Chabrol makes Hitchcockian films that are bourgeois satires; Bresson is austere and minimalist; Peckinpah's films revel in ultraviolence, etc, etc. Now, these pronouncements aren't exactly false, but by no means are they the whole truth and nothing but the truth. The problem is that they 'fix' filmmakers too easily and quickly, thus constraining our thinking about them to certain pre-determined pathways. Girish.

O mais sintético possível, que eu já deveria estar na cama: resistir a estas received ideas, quando a nossa cabeça já está quase integralmente formatada segundo teorias e lugares-comuns disseminados ao longo de anos e décadas, é, como escrever, um bocadinho complicado. Se alguém se atrever a caminhar pelos suspeitos caminhos da originalidade, e escrever que Ozu's films revel in ultraviolence e Peckinpah is austere and minimalist, a história encarregar-se-à de o tratar devidamente.

gelado #16

1. City Lights
2. City Lights
3. The Gold Rush
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10.


Top ten de Robert Bresson, para a Sight and Sound de há alguns valentes anos.

gelado #15



Não há coincidências, escreveu uma "escritora" lusitana. Engana-se redondamente, a sujeitinha. Preparava-me para escrever algo sobre Starship Troopers ( em concreto: os bichos), quando tal me vem parar ao globo ocular: "Starship Troopers doesn't mock the American military or the clichés of war - that's just something Verhoeven says in interviews to appear politically correct. In fact, he loves clichés, and there's a comic strip side to Verhoeven, very close to Lichtenstein. And his bugs are wonderful and very funny, so much better than Spielberg's dinosaurs. I always defend Verhoeven, just as I've been defending Altman for the past twenty years. Autoria: o cineasta francês da Nouvelle Vague que tem escrito abundantes elogios ao trabalho do realizador holandês. E agora o leitor pergunta, enquanto tira o batôn dos lábios e a peruca da cabeça: Starship Troopers porquê? Porque sim. Pelo sublinhado a negro. Por aquilo que de facto me faz gostar, e muito, do filme: insectos, muitos insectos, gigantescos, repelentes, maus, espetando as suas patas-arpões na tenrinha carne dos pobres "troopers". Se o cinema de Verhoeven teve sempre a subtileza de um camião a passar a 300 à hora por cima de uma pequena cabana, então é este o filme que melhor demonstra essa soupless e o seu costumeiro bom gosto. É violento, é literal, é primitivo, é uma delícia. E tem insectos. Já escrevi que tem insectos, daqueles pegajosos e que guincham como mil porcos em chamas? Pronto, eu escrevo: tem insectos pegajosos e que guincham como mil porcos em chamas. E se me metem insectos num filme, conquistam-me facilmente. É uma das especificidades que me faz logo aderir a um filme, por mais medíocre ele seja: insectos (quantas vezes a palavra "insectos" já surgiu neste post?). Se me dessem a oportunidade de realizar dez minutos de qualquer coisa, eu trataria de escolher a parte de On The Road em que o Kerouac e o seu amigo Sal andam a espezinhar insectos mastodônticos no deserto mexicano, em plena madrugada. Um psicólogo trataria de descobrir ramificações freeudianas neste fascínio cinematográfico por criaturas que cá fora me fazem comportar como uma criança de cinco anos. Se algum de vocês está a pensar em fazer algum filme, por mais complexo e arty que seja, insiram pelo menos um planozinho de cinco segundos com uma barata; como na altura eu já terei substituído o Mário Jorge Torres no Público, as quatro estrelas estarão pelo menos garantidas.

E o som da roda de um carro ou carrinha a passar por cima de terra batida? Sempre apreciei, tal como meter-me na garagem, fechada à chave, inundando os sentidos com o cheiro das tintas ( há quem veja novelas, ou goste de sushi, ou leia com gosto o Pacheco Pereira). Quando vi pela primeiríssima vez o O Sabor da Cereja, foi esse som, essa estremosa atenção a esse som, que me empurrou completamente para dentro do filme. Mr. Badhi poderia andar o filme completo a conduzir, sem falar com ninguém, sem objectivo definido, que eu continuaria a ver a obra-prima de Kiarostami, desde que lá continuasse aquela sonoridade. De facto, cada vez mais, os filmes que me vão agradando são os que dão a ouvir os mais insignificantes sons da vida. Cortar peixe, rachar lenha, folhear um jornal, sentar-se num sofá de cabedal, estrelar um ovo, colocar umas luvas, um conjunto de actos com o seu sonido particular, e que por vezes são submergidos pela grande narrativa em curso. O som cristalino dos passos de um insecto, enquanto ao longe se aproxima um carro a passar por cima de terra batida: obra-prima instantânea. E agora vou-me deitar, que amanhã tenho de acordar tarde. Força Rússia.

23/06/2008

gelado #14



O cinema animado tem dois nomes: Chuck e Jones; se ambos pertencerem à mesma pessoa, melhor ainda. A par de outro mago do desenho animado, Tex Avery, Jones foi o contraponto perfeito à visão normalizadora do mundo projectada pelos estúdios Disney, através do esbatimento bem definido entre as fronteiras do bem e do mal. Jones respondeu a este maniqueísmo com irreverência, anarquia, alusões surrealísticas, e com um evidente prazer em desconstruir as próprias formas narrativas da sintaxe fílmica, como no genial Duck Amuck. One Froggy Evening, que Steven Spielberg classificou como o Citizen Kane da animação, não chegando aos píncaros da invenção do filme acima citado, ou de outra pérola, What's Opera Doc?, é um mimo de entretenimento, em que um um homem tenta fazer fortuna expondo a bizzaria de um sapo cantor; como seria de esperar em Jones, nada é tão fácil como à partida se poderá pensar, e este sapo é muito selectivo quanto aos momentos em que deve dar uso à sua voz de barítono. São apenas oito minutos de desenfreada sucessão de números burlescos, mas onde cabem sátiras ao comportamento humano, desde a sua ganância à sua avareza, passando pelo amor à bebida e à solidão, um microcosmos da palha de que somos feitos. Um filme a ver de manhãzinha, antes de se marchar para o emprego com remela nos olhos. Quando morrer, cubram o meu caixão com um pano do Roadrunner, se faz favor.

O desrespeito pelas convenções também teve em Frank Tashlin um digno representante. Este homem, na década de cinquenta, provocu diarreias mentais a Truffaut e Godard, que nos Cahiers o elegeram a um nível ligeiramente abaixo de Jesus Cristo; até hoje, os americanos continuam sem entender porquê (opinião secundada pelo próprio Tashlin). Hollywood or Bust, a última colaboração Martin & Lewis (excelente batido confeccionado no Jack Rabbit Slim's), poderia ser a obra que Jones realizaria caso enveredasse pelo cinema da carne e do osso: não deve haver um plano em que algo de destrambelhado e irrisório não esteja a acontecer, e se dissermos que há por lá um cão piloto de automóveis, ninguém deverá ficar espantado. Este frenético road-movie entre New York e Los Angeles, imbuído de números musicais e de cores tórridas, vai infelizmente perdendo o seu gás anárquico pelo caminho, acabando a ordem e a lógica por prevalecerem no fim, com uma reunião nada canónica do par Jerry Lewis e Anita Ekberg (a fazer de himself). Não será pelo seu mcguffin ( paródia da cultura pop hollywoodiana) que Hollywood or Bust ganhará o mínimo de admiração, mas antes pelos destroços (literais) que as personagens vão deixando pelo caminho antes de atingirem a cidade dos anjos. Uma obra mais do que interessante enquanto está na estrada, mas que se limita quando encosta o carro.

22/06/2008

gelado #13


É evidente que o melhor filme de todos os tempos* estreou há precisamente vinte e quatro anos.

* pelo menos entre Outubro de 1990 e Dezembro do mesmo ano, altura em que Back To The Future roubar-lhe-ia a coroa.

21/06/2008

gelado #12



A primeira imagem reporta-se ao último plano de The Damned, um filme cujo dvd deveria vir coberto de lodo e com a inscrição Está por sua conta e risco incrustada a vómito no celofane. Se a qualidade de um filme poder-se-à medir na influência que tem junto do espectador, então esta obra de Luchino Visconti é um caso exemplar: mal terminada a sua visão, senti-me tão corrupto e cheio de maus pensamentos que ponderei seriamente enveredar pela vida de político ou de presidente de um clube de futebol, ou mesmo, num caso extremo, jornalista do Correio da Manhã. O cineasta italiano, retratando o colapso moral de uma família burguesa alemã nos primórdios do poder Nazi, faz uma compilação tão exaustiva dos pecados no mundo que transforma Sodoma e Gomorra num parque de diversões ligeiramente mais assustador que aquela coisa que existe no Colombo. O maquiavelismo oportunista de praticamente todos os personagens (salva-se a de Charlotte Rampling- belíssima) é encenado com requintes de sado-masoquismo, cada sequência filmada como um cerimonial negro, barroco, com abruptos zooms a darem conta da fealdade ética daquela gentalha. A sede de poder tem o seu caso paradigmático na personagem de Helmut Griem, um oficial Nazi perito na mestria das marionetas, usando cada elemento da família como intermediário para os seus próprios fins. Aquele gesto presente no último plano, partindo de quem vem (de quem menos suspeitaríamos, diga-se) é apenas o sintoma da entrada numa nova ordem civilizacional, e a antecâmara dos horrores que aí vinham. Grandíssimo filme, pejorativamente catalogado como "decadente"; quando se está a abordar a decadência...

A burguesia também está a cair de podre em Whity, onde temos direito a presenciar mais uma família de malditos. Se no filme de Luchino era a sofrêga procura de poder que todos ansiavam, aqui esse poder já está conquistado, tratando-se então de o empregar como abuso, com um negro (Whity, precisamente, cavalar ironia) a servir como joguete de humilhação para os enfastiados membros de uma família nos EUA (mas filmado em Almería) do séc. XIX. Rainer Werner Fassbinder decidiu filmar o seu Western sem cavalos nem cóbóis nem valores familiares, optando por colocar em campo personagens disfuncionais e tolinhas, e que se revezam em momentos de tortura psicológica, como acontece na sequência presente na foto aí de cima. Fassbinder conduz esta podridão (estou bonito, estou) de maneira rigorosa, privilegiando o longo plano fixo ( perfeitamente justificável em relação aos acontecimentos), aventurando-se por vezes em planos circulares executados com tanta perfeição que não se irão esquecer tão cedo (verdade, já vi o filme há quatro meses). No final, Whity deixa de interiorizar o lugar que a sociedade reservou para si, e trata de fazer umas coisinhas à sua maneira. Acaba tudo no deserto, numa cena de sublime relaxamento.

19/06/2008

gelado #11


Um crematório pode ser tão giro como um postal. Hoje em dia, os turistas deixam-se fotografar em frente deles.

NUIT ET BROUILLARD

gelado #10

He is also, without doubt, the most neglected major figure in American movies. Walsh never won an Oscar, and though he lived to 93, he was never even recognized by the Academy with a lifetime achievement award. His most famous films are available individually on DVD, but, alone among great American directors, there is no comprehensive collection of his work. Though he lived a more fabulous life than any depicted in his films, Walsh has never been the subject of a definitive biography (at least in English; there have been two published in France), and his rollicking 1974 memoir, "Each Man in His Time: The Life Story of a Director," has been out of print for decades.

...

It's strange that Walsh's image faded so quickly after his retirement in 1964. Perhaps he was too prolific for critics and festival organizers to select a truly representative sampling of his work. Perhaps, too, his versatility has prevented him from being instantly identified with a particular genre, like Ford with Westerns, Alfred Hitchcock with suspense, or Preston Sturges with screwball comedies. Whatever the reason, Walsh's life and work remain, for the uninitiated, an untapped source of movie treasure. For the rest of us, it is a gateway to a golden era only dimly remembered but still strongly felt.

Nesta taberna.


16/06/2008

gelado #9



É incoerente e não faz dinheiro: foram estas as razões para o estúdio Nikkatsu, especialista em Série B japonesa, despedir Seijun Suzuki após a estreia de Korushi no rakuin, ou como ficou conhecido para a posteridade, Branded To Kill. A flexisegurança da companhia ficou vesga perante tanta idiossincracia, um policial urbano onde convergem surrealismo, non-sense e referências à pop-art (então na crista da onda), em que a continuidade é abandonada em favor de instantâneos delirantes; não admira que tipos como Takeshi Kitano ou Kar-Wai ( e também Tarantino) tenham Suzuki como um dos seus autores de cabeceira. A história de um hitman a contas com uma obsessão amorosa, um fetiche pelo cheiro do arroz a cozer, e uma rivalidade com outro assassino (este singularmente designado Number One) é mero pretexto para uma tapeçaria oblíqua e sem aparentes ganchos de causa-e-efeito, onde golpes de teatro se sucedem como pãezinhos quentes a saírem do forno. Seijun emprega uma imaginação de banda-desenhada a Branded to Kill, em que cada plano, captado através dos mais estranhos ângulos, se assemelha a uma prancha animada de carne e osso. Que ninguém venha aqui à espera de "personagens humanas" e "lições de emoção", mas antes com a consciência de que irá assistir ao esfrangalhar das regras de género em pequeninos fragmentos, sem lei nem roque, e tendo como único limite a capacidade de invenção do cineasta. Obviamente, isto era demais para o lucro empresarial, sempre disposto a procurar e a dar mais do mesmo, seja no Japão, nos EUA, ou nas ilhas Galápagos. O reconhecimento artístico, porém, surgiria mais tarde, vindo de gente respeitável como...

...Johnnie To. O seu Fulltime Killer, um dos 2345 filmes que Johnnie já realizou só nesta década, readapta a mais simples premissa de Branded... (rivalidade entre dois assassinos e uma mulher no meio), e transforma-a num pastiche de tudo o que costumamos associar ao cinema de acção Made in Hong Kong, aka Deus-Nosso-Senhor John Woo. Opondo o discreto e letal O ao espalha-brasas e letal Tok (o nosso conhecido Andy Lau de Os Infiltrados), Fulltime Killer é aquilo a que o lugar-comum tratou de designar style over substance, com múltiplas câmaras lentas, situações inverosímis e tiroteios infinitos a desbaratarem qualquer noção de lógica. Um mero pormenor: todo o excessivo fogo-de-artifício (no final há um, literalmente) da obra é propositado, uma sátira/homenagem à coolness e ás acções típicas nos filmes do mesmo género, em que as explícitas alusões a Point Break (ver para crer, senhores e senhoras) ou Desperado não surgem por mero acaso. Claro que este pendor auto-reflexivo tem os seus limites (como se To desejasse outra cousa senão gozo elevado à escala máxima), e a última meia hora é chover no molhado do absurdismo, até porque vai-se abandonando progressivamente o carácter lúdico das citações para dar primazia à seriedade de pacotilha que tanto enferma algumas obras visadas. É um To menor, mas um daqueles que marcha bem com uma bejeca e um prato de tremoços, esse delicioso marisco.

14/06/2008

gelado #8

É uma sequência de uma depuração inolvidável. A minúcia silenciosa dos polícias é enquadrada por uma câmara igualmente paciente, observadora ao (e do) detalhe, expondo com uma precisão de regra e esquadro a rigorosa diligência dos dois polícias enquanto tentam entrar, enquanto estão dentro, e enquanto saiem da casa de Jef Costello. Detalhe, rigor, precisão, paciência, depuração: quando o tratamento formal se adequa ás mil maravilhas com o que está a acontecer, surgem milagres. Dez minutos onde se encontram a ascese de Bresson, o apogeu do visual de Alfred, a máquina policial de Lang. E que entretêm como o diabo. Uma cena extraodinária de um filme extraodinário. Páro por aqui antes que esgote o stock mensal de clichés.

12/06/2008

gelado #7

Last night I was in the Kingdom of Shadows.

If you only knew how strange it is to be there. It is a world without sound, without colour. Every thing there—the earth, the trees, the people, the water and the air—is dipped in monotonous grey. Grey rays of the sun across the grey sky, grey eyes in grey faces, and the leaves of the trees are ashen grey. It is not life but its shadow, It is not motion but its soundless spectre.

Here I shall try to explain myself, lest I be suspected of madness or indulgence in symbolism. I was at Aumont's and saw Lumière's cinematograph—moving photography. The extraordinary impression it creates is so unique and complex that I doubt my ability to describe it with all its nuances. (...).

Maxim Gorky, 4 de Julho de 1896, após o seu primeiro encontro com o reino das sombras.

gelado #6

the scene seems to arise from an archaic acoustic impression which endows it with the kind of troubling vaguerness that can inspire bizarre theories. A child who overhears the sexual intercourse of adults might imagine, for instance, that the man's voice is muffled not because he is speaking againts the woman's mouth or body, but because he has stuffed a piece of cloth into his mouth. This is the kind of display in Blue Velvet, reviving the surrealistic sexual theories of children. (...).

Michael Chion, David Lynch, BFI, 1995.

Impõe-se a questão: quantas árvores tiveram de ser abatidas para isto chegar ao mundo das letras?

gelado #5

Este pedaço de esterco (passe o eufemismo) foi capa do último ípsilon. No interior do mesmo, sete, sete páginas dedicadas ao dito cujo, e onde proliferaram depoimentos de luminárias da cultura portuguesa como Clara Ferreira Alves ou Bárbara Guimarães. Estranho, apenas, que o jornal do director Fernandes não tenha oferecido como brinde, na passada Sexta-feira, um par de sapatos, uma carteira Vutton ou um par de argolas. Fica para a próxima.

09/06/2008

gelado #4



Enquanto nalguns países a população procura fugir dos seus males no refúgio aconchegante do futebol, os dois protagonistas de Shatranj Ke Khilari desligam-se do mundo real através da prática incessante do xadrês. A região indiana onde vivem prestes a ser tomada pelos ingleses, os problemas com as respectivas esposas, os ressentimentos do passado: toda esta malaise é suprimida com a fruição do jogo mental, seja com as peças reais ou com peças de fruta a simularem bispos, rainhas e cavalos. Satyajit Ray constrói duas narrativas paralelas, uma envolvendo a vida mundana dos nossos heróis, e outra cujo epicentro é a relação diplomática entre o Rei indiano e os governantes ingleses (Richard Attenborough anda por ali), tudo isto passado no Séc. XIX. A comédia de costumes associada à primeira é harmoniosamente balanceada com a gravidade teatral da segunda, daí resultando um filme de uma enorme riqueza emocional, em que a caracterização do indivíduo nunca descai para terrenos caricaturais, mesmo quando o pitoresco faz a sua aparição. Um filme de época livre de espartilhos prestigiantes e académicos.

Innisfree utiliza The Quiet Man como mcguffin para tratar de coisas intemporais: a passagem do tempo, o envelhecimento, a morte, a melancolia, a relação do Homem com a Natureza. José Luis Guerín viajou até à pequena ilha irlandesa onde John Ford rodou a obra citada, e a partir daí criou um objecto cinematográfico que não assenta facilmente na plataforma documental. Re-ficcionalizando algumas das passagens de The Quiet Man com os habitantes de Innisfree, detendo-se longamente em ribeiros, lagos e florestas, estabelecendo raccords oníricos e impossíveis entre a vida no ecrã e a vida actual (a cena em que Wayne atira o seu chapéu), Guerin parece querer sublinhar o choque entre o idílico cinematográfico e a entediante e rotineira existência da realidade. Os planos contra-picados na floresta, as ruínas, e uma frase que se vai repetindo diversas vezes (Estão todos mortos), contribuem para fomentar a sensação de estarmos a visionar uma paisagem assombrada, ausente do mundo. O que ainda mais me agradou foi a atenção prestada aos rituais campestres, simples tarefas como apanhar lenha, ordenhar vacas, partir árvores através de métodos ancestrais, sequências de um extraodinário trabalho sonoro. As cenas no pub The Pat Cohan, onde muitos dos figurantes de The Quiet Man contam histórias e mostram fotos da rodagem, cantam e bebem, falam do IRA e dos ingleses, estão impregnadas de melancólica resignação, um último suspiro antes de muitos deles baterem as botas. Innisfree, para além dos seus prodígios formais (uma montagem mais do que visível, da autoria do próprio José Luis), é um manifesto de dedicação ao cinema e ás suas memórias, como o cineasta espanhol voltaria a evidenciar mais tarde.

07/06/2008

gelado #3



Decerto que o leitor conhece aquela secção no EuroNews intitulada "No comments", onde imagens da actualidade- seja um incêndio na casa da vizinha ou um confronto entre polícias e manifestantes numa qualquer avenida mundial- encontram-se desprovidas de palavreado jornalístico que as contextualize. Hiroshi Teshigahara, realizador japonês, decidiu em 1984 construir um documentário sobre o trabalho de Antonio Gaudí baseado nos mesmos pressupostos: as imagens falam por si, o resto é ganga descritiva e redundante. E então lá temos travellings e zooms "elegantes" e "muito belos" sobre as diversas obras do génio espanhol, convidando o espectador à contemplação atenciosa e, se possível, ao mais puro transe meditacional. Agradece-se o gesto de divulgar, para quem queira saber, a qualidade arquitectónica do catalão, mas cabe perguntar o que diferencia isto de um mero portfólio em movimento, destituído do mínimo ponto de vista sobre o que se está a filmar, apenas se preocupando com laboriosos e decorativos enquadramentos de câmara, ao som de música apropriada. Quando procurarem um equivalente cinematógrafico da New Age Music, procurem aqui.

Dusan Makavejev, nos idos de 60 e 70, era considerado o Godard dos Balcãs, tal como o futebolista romeno Gheorghe Hagi, na década de oitenta, era divinizado ao estatuto de Maradona dos Balcãs. W.R -Misterije organizma, o filme mais divulgado internacionalmente do cineasta jugoslavo, leva-me a ponderar a hipótese de Makavejev ter arranjado maneira de viajar vinte anos no tempo, visionado uns quantos filmes de Emir Kusturica, regressado à sua época e posteriormente ter metido mãos à obra. Obra excessiva, histérica, aos saltinhos e gritinhos, com uma montagem fragmentada e dissonante (ui, Godard), W.R desbarata por completo o seu início prometedor, um registo documental em tom levemente sarcástico sobre a vida e obra do DR. Wilhem Reich, em território norte-americano, para subsequentemente inserir à martelada a história de uma jovem comunista na Jugoslávia de setentas, defensora de uma revolução sexual no interior do proletariado. O mais curioso nesta salganhada "não-linear" e muito "anti-narrativa", é que ao fim de meia hora já sabemos o filme de cor e salteado e a sua mensagem já está bem identificada: liberdade sexual já!, abaixo a repressão política aos sentimentos. Por mais que tentem baralhar a cabeça do espectador com jump-cuts, saltos temporais e bricolage pós-modernaça, há filmes tão previsíveis como o mais banal filme de género. O porquê deste W.R ser incensado leva-me a questionar a sanidade mental dos seus admiradores.

05/06/2008

gelado #2

Quando fiz onze anos, a minha irmã mais velha , a conselho de um amigo, levou-me pela primeira vez ao cinema. A primeira imagem que vi foi o leão da MGM. Rugiu, foi terrível e eu tremi de medo. Na escuridão, procurei a mão da minha irmã e guardei-a bem apertada na minha. [...].

Abbas Kiarostami, in Abbas Kiarostami, edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, página 111.

Os bolsos não estavam (nem estão) carregados de vil metal, por isso as compras na Feira da Leya, do Livro, tinham de ser realizadas de maneira judiciosa, partindo do pressuposto da indispensabilidade das farturas. Na banca da Cinemateca, um calhamaço de capa dura sobre um cineasta iraniano ligeiramente famoso, a 12,50 Euros. Arregalar os olhos. Pergunta-se ao "gerente" se aquele preço é verdadeiro, ao que ele responde, com a mais séria cara, que "sim", como se a pergunta fosse uma gozo à sua credibilidade. Como é lógico, aproveitei a benesse. Dirigi-me à roulote das farturas. Num saco, Abbas Kiarostami, obra de luxo ao preço da uva mijona, no outro três farturas. Para o ano há mais.


gelado #1

Só me resta saber o que escrever.
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