27/10/2008

gelado #125


Eu bem a tento reprimir, mas a minha costela fascista sedenta de sangue emerge à tona algumas vezes, as suficientes para não fazer mal a uma mosca (mas não a um caranguejo, e tenciono aqui voltar ainda este ano). Ontem foi uma delas, quando vi John Rambo pegar nesse dispositivo militar do qual desconheço o nome. O que se seguiu foram dez minutos de transe em mode mata-me esses cabrões todos!, impulsionado por uma brutalidade e uma raiva (emocional, de montagem) que envia direitinho para o caixote do lixo objectos "realistas" e "chocantes" como o inenarrável Black Hawk Down. Tripas, cabeças pelos ares, um bombardeamento audiovisual de planos curtíssimos, onde se destacam aqueles, fechados, de Rambo e os sons de trovão da sua máquina, escangalhando com tudo o que lhe apareça à frente. Numa era de hiper-hiper-realismos do corpo, ainda há quem me consiga impressionar. Além disso, foi uma sequência que terminou com os bocejos da hora anterior, que me levaram a ter saudades da deliciosa panache involuntariamente burlesca da obra-prima Rambo III. Nevertheless, recomendo aos mais devotos fãs.

gelado #124

1) Nesta nossa época conturbada a todos os níveis, onde Karl Marx voltou a ser um herói, e em que eu tive de cortar a despesa com as azeitonas à mesa, cabe fazer uma pergunta essencial: porque é que na tv, sempre que se discorre sobre taxas de juro, desemprego, crédito à habitação ou crise financeira, o background visual é geralmente a Rua Augusta, e residualmente a passadeira da morte no Terreiro do Paço? Se no segundo caso há uma dimensão metafórica compreensível, no primeiro existe uma insistência numa imagem que carece de compreensão. Ou as Avenidas do Porto, Coimbra, Braga e Aliados do Lordelo não são dignas de também figurarem como suporte de assuntos degradantes? Um exemplo, entre outros, de um bafiento centralismo que teima em perdurar. Mas será que ninguém reflecte sobre isto? Tenho de ser eu? Não há cidadania suficiente neste país.

2) Uma das ideias que os defensores do negócio futebol nos tentam vender assiduamente é aquela que diz respeito a árbitros e dirigentes desportivos se tornarem invisíveis, para assim darem total primazia aos verdadeiros artistas do espectáculo, que segundo eles são os treinadores e jogadores. Aos treinadores ainda dou um desconto, pois por entre banalidades e catch frases o saldo anda sempre equilibrado. Quanto aos jogadores, pode-se escrever que há ratos de esgoto que conseguem expressar guinchos mais interessantes do que a maioria deles. É que são anos e anos a levar com "temos de levantar a cabeça", "pensar no próximo jogo", "vou trabalhar para merecer a confiança do mister", "O Benfica é o maior do mundo", " vamos dar a volta", "vamos entrar com tudo", " o adversário fez o primeiro golo na primeira vez que foi à nossa baliza", etc, etc. Como é que diminuídos mentais, cujas únicas coisas que sabem fazer é pontapear ou adornar a bola, jogar playstation e ás cartas, ver dvds contrafaccionados e pagar as mordomias das esposas, podem ser a cara de um desporto nobre? Podem, se pensarmos na imprensa desportiva. O discurso repleto de gíria futebolística, de frases repetidas até à exaustão e de perguntas eternas levou a que quem assista uma flash-interview ou uma conferência de imprensa não precise de ver outra, pois é sempre o mesmo filme a rolar através dos tempos. A primeira coisa que um extraterrestre aprenderia seria com certeza a linguagem codificada entre jornalistas desportivos e futebolistas. É um nó impossível de ser desatado, e é claro que para o florescimento do negócio e da imagem, torna-se imprescindível que nada de relevante e perigoso seja proferido nesses momentos de confrontação. "Estou aqui para ajudar a equipa".

26/10/2008

gelado #123


A mother nature, no cinema, poderá ter outra função além de ser um mero adereço de décor, capitalizado em planos tã lindos e tão relevantes como os cantos gregorianos de supermercado, que nos estão prestes a massacrar, agora que se aproxima o espiritual passa pa cá o dinheiro Natal; Malick, Dovzhenko, Sjostrom serão os nomes maiores da apropriação da natureza como personagem, tão ou mais importante do que as de carne e osso. Em Shara, de Naomi Kawase, cineasta japonesa sem lastro comercial no nosso extraodinário país, sucedem-se os planos de flores, plantas e árvores, e também de flores, plantas e árvores, imagens criadas que tornam ainda mais oblíqua uma narrativa onde prolifera a interioridade doméstica e a surdina. A câmara móvel segue os actores por entre canteiros e emaranhados de ramos num subúrbio japonês, intensificando os labirintos mentais que corroem a personagem principal. O momento da catarse, que ocorrerá num magnífico espectáculo dançarino ao ar livre, terá a chuva como elemento primordial, uma bátega esmagadora que abafará todos os restantes sons em volta. Foi para momentos como este que o Senhor Pai criou todas as coisas, inclusive a câmara de filmar.

gelado #122

Para o exterior, a imagem do cinema português tem um nome: Oliveira. É o paradigma pelo qual todos os outros filmes irão ser avaliados, desculpem lá a generalização. Poderia juntar-lhe o Pedro Costa, mas ainda lhe falta a institucionalização internacional, da qual eu espero que escape. A imagem do país, então, ainda deve andar muito pela Maria do bigode a puxar o burro e pelo Joaquim bêbado a malhar na Maria e no burro. E pela pobreza, pela tristeza, e pela saudade, e pelo terço na mãozinha; ideias feitas que serão sumariamente desmentidas quando o leitor turista se deslocar à 24 de Julho, onde terá oportunidade de se deslumbrar com trintões de fitness perfeita encostados às paredes da discoteca enquanto miram a estonteante alegria e as supimpas peidas do pitedo aos saltos, que dançam ao mesmo tempo que escrevem sms's; eu não sei nada disto, apenas me contaram, que eu sou um homem de família. Quando Noite Escura estreou em França, os Cahiers não gostaram. A Positif não gostou. As publicações de prestígio desprezaram. O quê? Sexo, uma câmara em movimento, José Raposo a comer salsicha à mão, diálogos nada eruditos e ainda por cima sobrepondo-se uns aos outros? O quê? Rejeitaram a afronta à instituição cinema português. Por outro lado, publicações mais mainstream (Studio, Ciné-Live) elogiaram o filme de Canijo, moderadamente, mas elogiaram; apreciaram o desvio à instituição. No ípsilon de ontem, leio que a Hollywood Reporter classificou Entre os Dedos, de Tiago Guedes e Frederico Serra, como um fervoroso exemplo de neo-realismo português; ignorando qual a estética do filme (além do preto-e-branco), levanto a hipótese da revista em questão ter feito tal comentário por ver confirmados os seus preconceitos sobre o nosso extraodinário país. Penso que esta ambivalência forma e conteúdo é importante no modo como os outros olham para os filmes de determinado país, ainda por cima de um que seja periférico. O mainstream português não vai a lado nenhum, e não é só por ser um dos piores do mundo, embora isso seja forte razão a ter em conta; é que os lá de fora consideram as mamas da Soraia e os assaltos do Fragata uma anulação do que eles julgam ser a verdadeira identidade portuguesa, tanto sociológica como cinematográfica. É compreensível. Eu também ficaria baralhado se me deparasse com um filme iraniano em que as personagens principais fossem naves espaciais.

gelado #121

Eu tinha qualquer coisa para escrever sobre o FC Porto, mas...entretanto esqueci-me.



Ah sim, já me lembro: (censurado pelo provedor).

22/10/2008

gelado #120


Estava prestes a iniciar uma breve crónica que envolvia o Mariano Gonzalez e um martelo pneumático, quando vejo que no canal 1 começa o Goodfellas (neste momento o Franciú está no bar a apresentar o plano do assalto a De Niro e a Liotta). Sobre o filme, não tenho mais nada a acrescentar ao que já foi escrito e dito ao longo de dezoito anos em milhões e milhões de letras e verbalismos. Claro que uma obra poderá ser sempre reavaliada ao longo dos tempos, em variação de contextos, mas este post não tem nada a ver com isso. Tem a ver com a pedagogia de Goodfellas, demonstrada nesse fotograma. Foram precisos alguns anos de gradual aperfeiçoamento, mas estou em condições de divulgar que, hoje em dia, o cortar de alho da minha pessoa segue ao milímetro a sábia técnica de Paulie. Requer paciência, nervos de alumínio, e um notável domínio da força da técnica sobre a técnica da força, mas a recompensa de tanto árduo labor terá uma bela recompensa, da qual eu estarei prestes a descobrir. Obrigado, Paulie, e que se fodam os Adriàs desta vida. Numa sala recheada com apenas uma mesa de vidro, Mariano Gonzalez encontrava-se vendado, amordaçado, e com as mãos e pés amarrados. Em cima da mesa encontrava-se um martelo pneumático...

21/10/2008

gelado #119


Daney afirmava que a cinefilia é uma doença. Ter a cabeça inundada de (apenas) autorismo é outra. Deve existir uma quantidade apreciável de realizadores que fizeram, pelo menos uma vez na sua vida, um bom ou um muito bom filme, mas eu, a levar com banhos de autorismo desde tenra idade, ou não os conheço ou, se sei quem são, resisto a ir ao encontro deles (isto levar-me ia ao The Mist, para mim um dos melhores filmes estreados em sala este ano). The Queen of Spades foi descoberto há um par de semanas, por recomendação de um site na minha lista de credíveis, onde também fiquei a conhecer o nome de Thorold Dickinson, realizador da obra em questão, por sinal adaptada de um conto de Pushkin. The Queen..., não tendo a marca dos grandes, não é nenhum caderno de encargos a formalizar na repartição mais próxima: é notável, só. Um filme de intensa ambiência sobrenatural, sobretudo psicológica e atmosférica, utilizando apenas os devidos recursos da fantasmagoria quando necessário, em duas sequências fabulosas, com Dickinson a prolongar ambas com requintes de sado-masoquismo, sendo que numa delas há maestra apropriação do som. A recriação em estúdio de uma Rússia de época tem tanto de evocativa como de anti-decorativa; é mostrado o que tem de ser mostrado e apenas quando o tem de ser mostrado. E o chiaro-escuro dispensa os bonitinhos pictóricos, para enquadrar simbolicamente a dualidade do personagem principal, um alucinado Anton Walbroock. A minha cabeça está repleta de ideias feitas, teias de aranha inamovíveis. Com a idade, pode ser que melhore.

gelado #118

[...].E assim Hollywood continua a dar tiros ao lado- ou será tiros no pé? J. Mourinha, ípsilon de Sexta-feira, rematando com uma pergunta a sua crítica a Max Payne.

Cada escriba tem as suas expressões-fetiche, muletas e amuletos vocabulares usados a tempos regulares, algumas vezes apenas com o intuito de disfarçar a ignorância em abordar determinado assunto. Mesmo eu possuo uns quantos habitués, tais como "algumas vezes apenas," "determinado assunto", ou "é". Mas eu sou um insecto quando comparado ao Gigante Jorge, um homem que tem pautado a sua estadia no Público com uma inacatável coerência, jamais cedendo, em texto algum, à tentação de não me irritar. Homens destes, acabaram, mas sigamos em frente e não pensemos mais nestes negros tempos de valores relativos. Caderno de encargos: o meu olho de insecto tem reparado que o Gigante é um adepto fiel deste conjunto de palavras, imprimindo-o, sobretudo, nos textos referentes a filmes que tenham feito, no mínimo, cinquenta milhões de dólares de receita nas páginas da Variety. A sua função é a de estabelecer o cumprimento dos serviços mínimos prestado por qualquer entertainment movie, um guia precioso para casais enfastiados de compras no centro comercial saberem que filme vamos ver hoje, amor? Olha, vamos ver aquele, pois segundo li no ípsilon, ele cumpre o seu caderno de encargos. 'Tás tão boa. Vestiste o fio dental que te pedi? Vais levar poucas vais. Deixa-nos só acabar de ver este caderno de encargos, que logo vês. Posto isto (mais uma chouriceira aqui do estaminé), foi com inegável surpresa e choque que não encontrei o caderno na crítica a Max Payne. "Um erro editorial", pensei, sossegando o espírito. Tencionei telefonar para a redacção do Público e perguntar pelo Vasco Câmara, mas recuei, seguro de que ele estaria a visionar um Fassbinder. Já possuído por ligeiros electrões nervosos, ponderei ir à papelaria onde me tinham vendido o jornal, e perguntar ao lojista onde diabo tinha ele escondido o caderno de encargos do Jorge. Mais uma vez, fiz marcha-atrás, ao recordar-me de que eu não tinha ido a nenhuma papelaria comprar o jornal. Voltei, qual São Tomé em dose supla, a ler para crer: e desta vez, leitor, a estupefacção atingiu níveis alarmantes, deixando-me meia hora de boca aberta, período em que um casal de moscas se abrigou na dita. Após cuspir os moscardos, direccionei o olhar para a última frase da crítica ( ali em cima), e um mal-estar apoderou--se dos meus intestinos: tinha que ir cagar. Na sanita, questionei a natureza da maldade humana: será que Jorge, de forma sibilina e gélida, andou durante três-anos-três a projectar uma ideia de Corporate friendly, apenas com o supremo desplante de me ver quase transformado em Hulk ( não passes a bola, não), quando na realidade ele escreve os seus textos cinematográficos com uma mão em cima de uma camisa de Simon Bolivar? Será, questionava ainda eu já com o papel higénico a postos, que a ausência dos cadernos complementada com essa última frase não é mais do que uma inócua coincidência? Os fortes alicerces das certezas davam lugar à derrocada das dúvidas (que merda de frase é esta?). E foi assim que me despedi da casa-de-banho, subi para o sotão, e qual bêbado com delirium tremens, procurei em suplementos poeirentos textos do Gigante que me consolassem: As Crónicas de Narnia, A Ilha de Nim, Harry Poter 12, Stardust, 300, etc. Refastelei-me com cada letra inócua. Com inusitada ansiedade espero o próximo ípsilon. Que Deus Nosso Senhor me acuda.

gelado #117

1) Quem queira ver um bom e bonito filme, vá ao cinema, ver o Mamma Mia. Que beleza, nomeadamente as paisagens, a fotografia. Meryl Streep esmaga, mais uma vez. Pensar que é a mesma pessoa que fez as Pontes de Madison County, com Clint Eastwood, é impressionante. Ou "A Escolha de Sofia", ou "África Minha", ou "Kramer vs. Kramer", entre tantos outros. Pierce Brosnan também faz sorrir, por ter aceite passar de 007 para este filme cheio de candura, pleno de sentimento e sem qualquer violência. E que bem faz ouvir as músicas dos Abba. Quando o filme acabou, desatou tudo a bater palmas na sala do Cinema Londres. via Arrastão.

E quando Pedro Lopes saiu da sala, um resplandecente arco-íris embelezava a bonita paisagem, e o anjo gabriel descia do maravilhoso céu, carregando quatro lindíssimas arpas de lã extraída de uma fofinha ovelha, e gabriel começou a entoar etéricos cânticos dos Enigma, e Pedro sorriu. E o povo sorriu. E a relva, as pedras da calçada, os automóveis, os marcos do correio, as bocas de incêndio, todos ganharam vida, e começaram a sorrir. E o radioso Sol desceu e sorriu e dançou com Pedro, o povo e as bocas de incêndio. E Pedro, extasiado perante tamanha beleza, afirmou ao povo, ás harpas e à relva que não era candidato à CML. E a gloriosa alegria estendeu-se a todo o planeta. E todos desataram a bater contagiantes palmas e viveram felizes para sempre. FIM.

2) Benfica- Penafiel, Taça de Portugal. TVI. A um minuto dos penaltys:

repórter TVI: que disse aos seus jogadores para a marcação das grandes penalidades?
treinador Penafiel: disse para meterem a bola na baliza.
repórter TVI: é esse o trunfo?
treinador Penafiel: vamos ver.

19/10/2008

gelado #116

I always have the feeling that the men who started religions were more open-minded than their followers and the institutions that determined how the words would be followed. Peter Gabriel

Aquando dos cinquenta anos da Cinemateca, passaram na RTP, no seu telejornal nocturno, imagens do pandemónio que se apoderou do público na estreia portuguesa de Je Vous Salue, Marie, de JLG. A imagem televisiva não dava para discernir grande coisa, a não ser o horroroso guarda-roupa lusitano em 80's, os bigodes, um coro a repetir Fascistas! Fascistas! em loop, e uma senhora, no canto inferior esquerdo do ecrã, empunhando uma cruz com alho na direcção da tela*. Sobre isto, não tenho mais nada a escrever, a não ser que apoio qualquer acção ou medida que chateie e perturbe a corja de beatos e beatas, e num grau superior, o Prof. César das Neves. Três ou quatro anos depois estreou The Last Temptation of the Christ, e novamente a corja exaltou-se com grande alarido, escandalizada com a mácula largada em cima do Senhor. Testemunhas credíveis relataram que a senhora da cruz com alho percorreu todas as salas de cinema do país onde o filme estivesse a ser exibido. Desejos de pragas egípcias foram lançados a Scorsese, que se tornou persona non-grata em antros de buços, vinho, xailes negros e caras ruborizadas do país, perdão, em paróquias nacionais. E sobre isto nada mais acrescento, a não ser que concordo com o mais mesquinho e despropositado movimento que provoque a ira da cambada de devotos fanáticos, ou num nível acima, do Dr. João Neves. Lembrei-me disto tudo porque ando a ouvir de há uma semana para cá a banda-sonora da obra de Martin. Da responsabilidade de Peter Gabriel, músico do qual a minha opinião é nenhuma, apesar de ter um disco dos Genesis, ouvido uma vez e com diligência esquecido uns segundos depois. Percurssões, guitarradas, electrónicas, ambientalismos, ritmos de época, e eu gostaria de esclarecer mais qualquer coisa sobre a relação entre estas cambiantes musicais, mas acabo de reparar que no meu Bilhete de Identidade não está lá nenhum Luís Maio ou João Bonifácio. Apenas escrever que, se o filme questiona a verdade oficial da história de Jesus Cristo, nada mais apropriado de que a sua música seja suficientemente pagã para dessacralizar ainda mais uma narrativa de dois milénios. O "Mission Acomplished" é musicado com sinetas e (matem-nos! atirem-nos pá fogueira!) bateria e guitarra eléctrica. Amen, gosto muito. E sobre isto nada mais há a divulgar, a não ser que...

* acabo de descobrir que há um vídeo no you tube que mostra o evento. A senhora só é visível se o leitor fechar os olhos.

gelado #115


As human qualities não têm culpa que as tratem tão mal.

16/10/2008

gelado #114


Les Bonnes femmes, de Claude Chabrol, é um supremo exemplo daquele tipo de obras em que algo se parte no seu interior, levando a narrativa para lugares e figurações de que estávamos tanto à espera como de ver o Eduardo Pitta a almoçar numa tasca. Os últimos quinze, vinte minutos desenvolvem-se sob uma tensão sufocante: um simples gesto de uma mão a aproximar-se da outra, ou uma subtil alteração na face são motivos suficientes para instalar o thriller (em regime económico), no que antes era um retrato modorrento de jovens burgueses e jovens burguesas mais os seus jogos florais na belle Paris (penso que isto está incorrecto, mas eu já vi o filme há cinco meses). E não deixa de ser curioso que Chabrol desenhe a segurança na cidade, para transferir a ameaça e o castigo (sim, senhora, c-a-s-t-i-g-o) para os bosques campesinos, filmados muito de acordo com aquela expressão inglesa, sense of wondrous; curioso como quem diz, pois este homem quase sempre viu horrores na ruralidade. É um filme para merecer uma segunda visão, pois tudo aquilo que acháramos supérfluo e fútil na primeira parte, adquire o seu pleno significado após terminar a segunda . Entra a Bernardette Lafont.

gelado #113

It is also moving to think that we have seen so many trees in cinema, most of them were just there, captured but ignored like insects killed on the windshield of a moving car (which is the way most movies treat the real world). Many other trees are used as clichés, either because they receive massive injections of signification, symbolism, or because they are chosen for a spectacular appearance which implies a silent voiceover saying : look how beautiful (or ugly, or cute, etc.) it is ! And then, by suppressing my freedom to elaborate what can be thought, felt, dreamed, from the representation of... anything. Trees are a rich basis to start with, but a human face, a city, the sea, a wall, an eye, the soil, a cat, etc. are also potentially infinitely rich. Jean-Michel Frodon.

Simplificando até ao núcleo terrestre: perder tempo com o real. Ler isto imediatamente após ter vivido La Libertad, de Lisandro Alonso, estava escrito, no vento ou num cinzeiro. Fabulosa entrevista, que me leva a questionar o que eu ando para aqui a escrever sobre filmes.

gelado #112

A mais viva prova dos espantos milagreiros da natureza chama-se Ricardo Quaresma. Este rapaz prova que é possível andar, comer, correr, usar brincos ou de lidar com cem telemóveis sem que se encontre o mais remoto vestígio de actividade cerebral. E, pasme-se, também ser funcionário da bola. Quaresma é um extremo: precisa de cinquenta jogadas na linha para ultrapassar o adversário, mesmo que este deixe cair uma perna e fique cego aos aos três minutos. Quaresma é um "especialista em bolas paradas": no FC Porto, ao longo de quatro anos, dos seus novecentos mil livres e cantos devem ter resultado uma meia dúzia de golos. Quaresma é "alvo privilegiado das chuteiras alheias": ao longo de quatro anos no FC Porto, só me lembro das suas entradaa assassinas com o pé na frente, algo que voltou a repetir contra a Suécia. Quaresma é "um jogador rapidíssimo": desenterrem o Garrincha, metam-no a correr com o Ricardo, e pode ser que tenhamos uma prova equilibrada. Quaresma é "imprevisível": a solução número um do Ricardo é fazer sempre, coerente e sistematicamente, uns números de circo junto à linha, perdendo quatro segundos depois a bola, isto se por acaso não a tiver atrasado da linha de meio campo para o central ou guarda-redes. Quaresma é "habilidoso": os golfinhos do jardim zoológico e os elefantes do circo também o são. Quaresma, Quaresma, Quaresma: uma grande época sob os auspícios do saudoso Adriaanse (esse que os notáveis portistas tanto abominam, puta que os pariu), em que pareceu confundir-se com um jogador de futebol; depois lá foi fazendo as suas gracinhas, de vinte em vinte jogos, sendo que nos decisivos está quieto; mas nada está perdido: se Mourinho conseguiu fazer de Nuno Valente um dos melhores laterais-esquerdos da Europa, pode ser que, com ínfima paciência e muitos sumoles depois, transforme o "habilidoso" num dos melhores seiscentos jogadores do futebol europeu. Haja fé.

Entretanto, o Prof. Carlos Queiroz confirma que foi uma aposta segura: o objectivo de afastar a selecção da África do Sul continua a carburar em pleno. Como rigoroso, metódico e anti-populista que é, as bandeiritas na janela certamente o incomodariam.

13/10/2008

gelado #111

Do nada viemos, para o nada voltamos.

Tornou-se oportuno visionar recentemente De l' autre côté, em face do tópico "emigração/imigração" que tem poluído a tinta de jornal e a paisagem audiovisual portuguesa, com o contributo de imparáveis figuras como o mestre de submarinos Paulo Portas, aquele gajo do PNR, ou mesmo o Cardeal Pacheco, que no seu terror ao hediondo politicamente correcto criticou Sá Fernandes por ter retirado de Entre-Campos o bonito cartaz do gajo do PNR, uma autêntica afronta à liberdade de expressão de indivíduos que pugnam pela felicidade alheia. De l' autre Côte, então, documentário da belga Chantal Akerman, autora de um magistral filme-maratona, Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, que a passar num multiplexe levaria não só o público a zarpar da sala como também as cadeiras e o ar condicionado fugiriam dali em pânico. Neste seu trabalho, Akerman aborda a passagem ilegal dos mexicanos para o outro lado, em particular para o Arizona, entrevistando familiares de jovens que sucumbiram às balas enquanto tentavam o american dream, homens que quase conseguiram mas viram-se forçados a voltar, sempre com a preocupação de não se vergar a qualquer nódoa sensacionalista, evitando planos aproximados de rostos magoados e ignorando a soporífera música dos coitadinhos. Por vezes, a cineasta coloca a câmara próximo de um muro ou vedação a separar os dois países, filmando o outro lado, o das oportunidades, encarnando o estado de alma de quem vê ali a salvação mirífica mas inantigível. Há um plano sequência que se inicia junto a uma dessas vedações, passa pelo fluxo rodoviário num posto fronteiriço, e termina na fantasmagoria de uma aldeia mexicana; silêncio-barulho-silêncio, tudo num único plano, impressionante. Chantal não se coíbe de filmar a poeira, as ventanias, e a natureza em bruto da paisagem mexicana, talvez tentando encontrar aí as razões para a fuga para a derrota. Escapando à unidimensionalidade, dá voz, na segunda parte, ás gentes americanas, os famosos rednecks, que se mostram receosos das "doenças" que "eles" possam trazer e de que eles "tomem conta disto tudo". Cada um com as suas razões. Só digo isto: prefiro, na generalidade, um (a) brasileiro (a) a atender-me num café do que um português.

gelado #110

Uma das maneiras de desqualificar a opinião (mesmo que fundamentada) do outro sobre a cultura do sucesso é a tirada clássica tens é inveja. Diz-se que ter inveja dos êxitos alheios é um clássico português. Não o será menos, contudo, que afirmar que o pensamento de alguém é apenas movido a lenha da mesquinhez invejosa. O Pedro Rolo Duarte não gostou que o Luis Rainha não tivesse apreciado devidamente (seja lá o que isto queira dizer) o primeiro episódio da nova série dos Gato Fedorento, e tratou de o acusar do pecado mortal. Santa Bárbara, o pecado, a infâmia, a maior prova da fraqueza de espírito, não gostar dos actuais Gato Fedorento, que pelo que vi nestas duas primeiras emissões do Zé Carlos, ainda conseguem estar em pior forma do que no anterior programa da RTP. Breve cronologia: tiveram duas séries brilhantes (Fonseca e Meireles) na Sic Radical, a terceira (Barbosa) já descia ligeiramente de nível, mas ainda permanecia muito boa, na RTP iniciaram-se com Lopes da Silva, alternando notáveis delírios burlescos com mediocridades sensaboronas. Diz que é uma espécie de Magazine, também na televisão pública, alterava o formato de sketch puramente absurdo, sem referências precisas, para dar lugar a uma caricatura da realidade portuguesa, muitas vezes sucumbindo ao humor engraçadinho, a que não seria alheio a presença do bovino público na audiência. Entraram em spots publicitários indignos de um João Baião, tendo o menor denominador comum como objectivo. O novo trabalho é um remake noutro canal do Diz que é.... E aquilo que era humor abrasivo, desconstrucção da própria linguagem, como referiu uma vez o RAP, exponenciação ridícula dos mais banais actos quotidianos, deu lugar a uma revista à portuguesa mais sofisticada, um contra-informação em carne e osso. E depois enaltecem-lhes a "coragem" por se meterem com "prestigiadas" entidades nacionais. Epá, por mais coragem que mostrem, se aquilo não activar os processamentos físicos que me permitem rir, então a coragem que vá bardamerda. Uma instituição nacional, é o que eles são no momento, tal como o foi o Herman durante muitos anos, com a cristalização criativa daí resultante. Felizmente, parece que decidiram abandonar a tv após este programa. Boa sorte, e obrigado, entre outros, pelo "Gajo de Alfama", o "shôr vitor", o "primeiro ministro com dupla personalidade", o "atum", o "telejornal popular", "soldados cobardolas", "cidadão revoltado", "brigada anti-droga", e a que para mim é a sua obra-prima, "Vida e Obra do Doutor Vitor Fonseca, médico, escritor, professor de macramé".

12/10/2008

gelado #109


É só para avisar ao pessoal que aqui vem ter através do Google Reader que este blog tem um novo post.

11/10/2008

gelado #108


O suor nos corpos, as rugas a flagelarem a face: em Night and The City, de Jules Dassin, existe uma pormenorizada atenção aos detalhes da dimensão física, dos corpos e nos corpos (gajo que se queira credibilizar na escrita de cinema tem de utilizar a palavra corpos de mês a mês, no mínimo). Este hyper-realismo atinge o climax numa extraodinária cena de luta entre dois lutadores greco-romanos (estão os dois na foto) , embate de carne e músculo sem receio de mostrar todo o esforço, todo o sofrimento, e toda a resistência que existe numa bulha a sério. A baba sai da boca, os olhos contorcem-se, os ossos chocam, só resta esperar pela foice. As pancadas são secas, brutais, sem adornos espectacularizantes. A ausênca de música expande ainda mais o primitivismo da cena. Aqui não há super-homens artificiais, apenas dignidade.

gelado #107

A maior prova da ilusão do cinema é aquela que permite a alguém afirmar que determinada imagem "é muito parada". De facto, a premissa cinematográfica tarda em concretizar-se: onde estão as tão propaladas imagens em movimento? Até hoje, em data alguma ou local seguro, se registou um caso que fosse de imagens que tivessem saído da tela, atropelado o público, provocado um acidente na estrada, e que acabassem numa borracheira colectiva numa taberna ou bar. Reflectindo melhor, começo a pensar que os apregoadores da "imagem parada" começam a ter alguma pertinência no que dizem, e portanto não existe nenhuma ilusão, assim negando eu a minha frase inicial, o que é deveras lamentável, porque só alguém profundamente desequilibrado poderá contradizer-se ao fim de cinco ou seis linhas. Mais um post gasto. Next.

08/10/2008

gelado #106


O cinema está a acabar, dizem os mais optimistas. O cinema acabou, atrevem-se os trágicos. Os trágicos que me perdoem, mas eu sou dos optimistas, e por conseguinte, considero que o cinema está a caminho do fim. Tal como eu, o leitor, o John McCain que neste momento se está a rir para Obama, o Taj Mahal, ou o jaquinzinho. A última vez que comi jaquinzinho foi na Rua da Misericórdia, perto do Estádio, num modesto restaurante sem comida de autor, a blasfémia. Acompanhado de um divinal feijão preto; seguramente a melhor refeição tomada em Lisboa nos últimos dois, três anos, talvez apenas comparada aquela provada num outro estabelecimento recatado e sem fins lucrativos, onde o dono só sabe falar português e mal; foi na Rua do Arsenal (só faltava mais esta), um arrozinho branco com pastéis de bacalhau daqui (sim, estou a fazer aquele gesto com o indicador e o polegar no lóbulo orelhal). Relembro aos mais distraídos que este blogue pugna sem freio pela indulgência e pelo narcisismo cavalar. Quem se sentir perturbado ou irritado, pode ir consultar mais umas fotos do Jardim de Santo Amaro ou mais uns comoventes "Retratos de Trabalho", ou mais um emocionante "Hoje Acordei Assado", material altruísta e de dedicação ao povo. Onde eu aí? Ah sim, a Cláudia Vieira....perdão, o jaquinzinho. Está a acabar. Desde a famigerada UE ter proibido redes de pesca com buracos minúsculos, existem cada vez menos num prato ao seu dispor. E carapaus limados à algarvia igualmente . Contentem-se com espuma de limão grelhado com tofu e foie gras às três tabelas. Esta ideia de eu, burguesinho suburbano, me passar por defensor das tradições e gastronomias populares é a coisa mais ridícula que apareceu na net desde o Pedro S. Lopes aderiu à blogo-isfeira. Não tenho culpa, pois hoje numa Fnac estive a ler umas páginas de um livro do MEC sobre gastronomia portuguesa, e deu-me para a fome e para isto. Pronto, os jaquinzinhos estão-se a despedir. O Cinema também. Pela simples razão de que daqui a duzentos anos não estará aqui ninguém. Se enveredar pela ciência, posso argumentar com os cinco biliões de anos que distam para o Sol explodir e arrebentar com esta merda toda. Não haverá negativo que resista. Talvez sim, talvez o Homem, se ainda cá estiver, tenha arranjado uma engenhosa forma de se estabelecer num cu de judas universal, transportando com ele todas as coisas que nos fazem felizes, como os negativos filmicos, o bacalhau à Gomes de Sá, o Lisandro Lopez, e a erva do tabaco. Recapitulo, então, em face dos últimos desenvolvimentos e aleatórias projecções futuras: o cinema PODE não estar a acabar. Mas para alguns, ele já fechou as portas há muito. E é aí que entra Apichatpong Weerasethakul.

O senhor, tailandês de nascimento e de cidadania, tem um filme intitulado Mysterious Object At Noon. Retenho a primeira palavra, pois é ela que define, de forma simplística, todo o cinema deste enormíssimo cineasta. Os pródigos da desgraça argumentam com a estereotipização de imagens e enredos, de simbolismos repetidos até à exaustão, de estupidificação bovina, de retrocesso mental, de cedências televisivas: o cinema está mais morto que a libido de Brigitte Bardot. Por amor de Bènard, vejam os filmes deste homem. Vejam este Syndromes and a Century, um trabalho com mais suspense, imaginação e surpresas que um desses thrillers "que o fará saltar na cadeira", como anunciam nos trailers. Não sejam preconceituosos com "planos fixos" e "cenas paradas", e encarem o realizador como, para dar caução, um híbrido de Antonioni e Lynch em terras asiáticas. Uma arte da contemplação, da pausa, do real esventrado por rupturas que dividem, literalmente, filmes em dois, sem que exista fragmentação de um registo, de uma montagem. Deveria ser proibido por lei desvendar sinopses dos filmes de Apichatpong; este mundo é para se descobrir sem pré-preocupações de ordem narrativa. E com disponibilidade para se inebriar, coisa de não pouca importância. Mas será que já não conseguimos ver um filme que não nos agrida com metralhadas palavrosas? Imagem+som= parece mesmo básico.

gelado #105


É óbvio que eu com este cabelo ridículo, estes óculos sempre embaciados, e estes tennis datados já em 1993, não vou a lado nenhum.

gelado #104

O Hélder Beja escandalizou-se com um anúncio de trabalho de uma revista que eu nem pegaria com as luvas anti-radiação que comprei há escassos segundos num PLUS imaginário. A indignação e a ofensa, contudo, atingirão proporções ainda mais graves quando a mesma revista publicar dentro de algum tempo mais um anúncio, a que este blogue, em colaboração com o Professor Fofana, já teve acesso:

Meu boi, se sabes soletrar duas vogais e uma consoante, se conheces a tabuada do 1 como a planta do teu pé, se fazes do telemóvel o teu Deus, se pretendes ser explorado e humilhado tal e qual como numa praxe universitária de sonho, se conseguiste ler este conjunto de palavras (se é que és capaz de descodificar o significado da palavra "palavra"), em menos de duas horas e vinte e um minutos, então, minha estúpida arara, precisamos de ti, minha besta quadrupula. Prepara-te para privações e manipulações que farão as galés de Ben-Hur tornarem-se na Rua Sésamo. Apressa-te, bosta jingona. Metes nojo aos porcos, parasita.

- Ó Chefe, acha que isto resulta?
- Primeiro, não sou Chefe, sou Senhor. Depois, claro. Nunca subestimes, criatura ignara, a insegurança e a precaridade humanas, valores consagrados na nossa bendita economia (ai que me venho) de (ai sim) mercado (humm) livre (isto é tão bom). Além disso, há uma vertente psicológica nada despicienda a considerar, meu insectozinho: alguém se julgará possuidor de tão assaz sofisticação e descontrucção de códigos semióticos, que irá achar o nosso reclamo original e honesto, ainda por cima inserido num mundo hipócrita e falso como um Luís Amado. Por tal apreço sentimental, correrá para aqui com todo o entusiasmo de uma vida fresca. Se nada disto resultar, ainda temos os sadomasoquistas. Cappice, filho de uma masturbação mal efectuada?
- (de gatas e mãos juntas à cabeça): Sim, meu bom Senhor. Sim, meu amo. Elucidai-me sobre a gentil arte do rebaixamento da auto-estima e das expectativas. Esclarecei-me sobre os prazeres de uma vida com futuro incerto e sem nenhumas garantias. Fazei-me extasiar com as virtudes da selvajaria mercantil. Meu bom senhor, não me abandoneis neste momento de corpórea vibração (lambe a mão do Senhor).
- (suspiro). Pronto, pronto. Vamos começar pelo princípio.

06/10/2008

gelado #103


Gion no shimai inicia-se com um longo travelling por entre um frenético leilão de peças várias no interior de um edifício. Em dois minutos ficam estabelecidos, de forma simbólica, os valores da transacção humana, perdão, comercial, e do sentimento de posse que irão perspassar pelo resto do filme. Há quem não se resigne a esta condição de produto, e tente fazer da astúcia e do encanto feminino armas de ascensão (ver foto). Um mundo povoado de figuras masculinas ora corruptas, ora patéticas, quando não as duas; só se combate o sistema patriarcal com as devidas doses de oportunismo. E por entre diálogos sussurrados e uma superfície de calmaria, Mizoguchi (ao pé dele somos todos mortais, amén) construiu uma das mais violentas obras artísticas do século XX.

gelado#102

Unless my memory is playing tricks on me, I don’t believe that Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, or Carter ever used the terms “good guys” or “bad guys” in public speeches, at least not without any trace of irony. Whether this started with Reagan, the first Bush, or the second, these terms have finally become coin of the realm in the campaign speeches of both McCain and Palin, seemingly as acceptable indexes of reality. If Obama and Biden have more recently used these terms unironically as well, out of some misplaced sense of self-defensiveness, then this may rule out the possibility that I’ve been idealistically entertaining, that Obama may be the first full-fledged grownup to have run for President in several decades.

I hasten to add that calling people you want to obliterate “bad guys” is hardly the same thing as calling Hitler and/or Stalin and what they stood for “evil”. The latter is an ethical position of some kind; the former is a reference to games played (and concepts played with) by children. And not being able to tell the difference between the two–which may bear some relation to not being able to tell the difference between Mahmoud Ahmadinejad and the mullahs, or between any of the leaders deemed as “bad guys” and any of the civilians who would likely be the first to be hit by any bombs or missiles–is clearly related to a child’s desire to make contemporary warfare understandable in the same simplistic terms as Star Wars, thus helping to account for CNN logos and James Earl Jones intoning station identification. In much the same spirit, CNN’s lead-up to the first Presidential debate proudly called itself “Debate Countdown”–calling to mind that the “countdown” itself was the invention of Fritz Lang, used as a suspense device in his most childish film, Woman on the Moon. [10/5/08].

Jonathan Rosenbaum.

Em relação à imagem, veja o que se passou com um dos acontecimentos mais importantes dos últimos anos: o ataque às Torres Gémeas. Houve muita gente que viveu essa experiência pensando que estava a ver um filme. Depois, apercebeu-se de que aquilo era uma imagem que vinha da realidade. Passados 20 minutos, essa imagem já se tinha transformado numa glosa de si mesma. Já tinha voltado a ser ficção. Como aquilo era passado en boucle, em espiral, ao fim de algum tempo o impacto dramático da primeira imagem ia-se diluindo à medida que havia uma sobreinformação, um regresso do mesmo. Eduardo Lourenço, revists LER.

Abordando questões diferentes, Rosenbaum e Lourenço prestam uma justa e perversa homenagem à contaminação linguística e à percepção banalizadora da imagem. De Hollywood, obviamente. Corja de anti-americanos, pá.



gelado #101

1) Ouvir Alvalade a assobiar e insultar Lucílio Baptista é uma traição infame e insolúvel. Que se segue? Director Fernandes a achincalhar Bush? Pedro Mexia, o Subdirector, a cuspir em Bénard? Jaime Nogueira Pinto a mijar na campa do botas? Bento XVI pegar fogo à Sistina? Crise de valores e de memória. Estou preocupado.

2) Estou tão preocupado que já pondero a hipótese de obter licença de porte de arma para me defender das pessoas que possuem licença de porte de arma.

3) Gato Fedorento (2003-2005). R.I.P.

4) Nenhuma pessoa no seu perfeito juízo poderá defender Sarah Palin. Pedro Marques Lopes, eminência parda de blogues de direita, no Eixo do Mal, SIC-N. Não obstante, adoro ler os números de conturcionismo argumentativo na defesa da senhora. Um apelo à capacidade ficcional de cada um.

5) Não faço ideia.

6) O desespero: sair de casa à uma da manhã, calcorrear uma rua deserta durante duzentos metros, entrar numa tasca e encontrar a máquina do tabaco avariada. Andar mais cinquenta metros (para Oeste), entrar num café e comprar o vício. Fazer o mesmo caminho de volta, já com um cigarro acesso, e deparar com um gato morto na estrada, que há dez minutos ali não jazia. Contemplar com um nó na garganta o gato. Voltar a entrar em casa. Colocar isto online.

05/10/2008

03/10/2008

gelado #99



Não há um único "Love You" nestes dois filmes.

Na primeira vez que tentei ver Before Sunrise, tinha então dezanove anos, adormeci ao fim de vinte minutos. Como tinha gravado, voltei à carga uns dias depois, e desta vez a experiência foi muito diferente, pois adormeci após os vinte e cinco minutos. E ficou por aí, durante uma década (até há três dias) a minha história com o filme de Richard Linklater, mesmo quando há um par de anos me ofereceram o dvd, desde logo guardado com todo o carinho na prateleira. No Domingo passado, antes de ir ter com o meu amante, estava a fazer zapping e encalho na TVI, que passava o Before Sunset, também ele ignorado até ao momento nesta casa. No ecrã, uma conversa num carro. Desliguei o miserável aparelho, que um filme é para ver do início. Reavivada a memória, pirateio com todo o gosto o Sunset, que fica pronto num instantinho, e activo o modo Double Bill para Terça-Feira, por entre o estritamente essencial à boa saúde, café e cigarros, não fosse voltar a adormecer a ver um filme, algo que já não sucede há muito tempo, nomeadamente desde. Before Sunrise, muito bem. Uma sucessão, até ao quarto de hora final, de conversas inteligentes e com o seu quê de verborraico, alguns clichés (aquele poeta, sinceramente...), um momento de constrangimento, e um agradável cartão de visita da Vienna turística. Dei-me conta que ao fim de um determinado período eu já não prestava a mínima atenção ao que diziam. A minha cabeça já estava no outro filme, pois, caro leitor, apesar de ignorado até à data, eu sabia bem a estória que o envolvia. No entanto, despertei a partir do momento em que a melancolia da despedida se foi instalando, e senti que o meu filme tinha começado; os Chesterfields, esses, marchavam que nem uvas, muito obrigado. Pasmoso aquele momento na fonte, com os olhares a substituírem as palavras de forma perfeita. Estação, beijos, choro. Dali a seis meses. Finito.

Ah, Paris, "Pári", a cidade da revolta estudantil, dos carros e das casas desfeitas pelos jovens da periferia, da Belucci a ser enrabada num túnel asqueroso, mon dieu, trés jolie. Shakespeare and Company. Um escritor a apresentar o seu livro, sem nunca deixar de referir o que lhe tinha acontecido nove anos antes. Flashbacks do primeiro filme, e uma salva de palmas para Linklater, por os encadear tão bem que a primeira aparição da Julie Delpy em Sunset mais parece advir dos mesmos, algo impossível de estar a acontecer naquele momento, um desejo do escritor. É mesmo ela, e lá vai o escritor Hawke a caminho da Julie, e há um embaraço tão grande naquele cumprimento que eu tive de parar o filme e ir comer um iogurte. E recomeçam a conversa, mas desta vez entrou por um ouvido e não saiu pelo outro. O pudor, santo Deus, o pudor. Uma catrefada de palavras e sorrisos para fugir ao silêncio, para fugir ao passado, para escapar à confrontação. ME? I have no problems, diz um sorridente Ethan. Temos de apalpar o terreno, estudar as hipóteses de êxito, antes da verdade nos sair da boca; até lá, não temos nem um problema. A vontade de aproximação de Hawke é tão grande (bem elucidada numa breve corrida até um banco de jardim) que espatifa qualquer cínica resistência. O tempo real de Linklater provoca a sensação de uma paradoxal clausura: o mundo entregue áqueles dois, não há mais nada, mais nada. Uma hora e pouco por nove anos, fraca consolação pela passagem do tempo. Este texto está com zero preocupações quanto à edição. Tal como em Sunrise, as palavras vão escasseando à medida que o fim se aproxima, mas desta vez transportam uma alusão de esperança. Magnífico e evocativo aquele subir de escadas no prédio de Delpy, revelação total do futuro próximo. Tens de apanhar o avião e depois.... Before Sunset não existe sem Before Sunrise, mas, quanto a mim, é Sunset que impregna de foco emocional os dois filmes. Um dos melhores que vi este ano. Quanto aos Chesterfields, marcharam que nem azeitonas, muito obrigado.

gelado #98

HUGHES: There’s a moment in Sarabande. I don’t know what I was looking at exactly, but it reminded me of when I was a kid and we would go on family vacations. I remember laying in the back seat of the station wagon, looking up through the window and watching . . .

DORSKY: {smiles} . . . the passing wires? Yeah, I love that.

HUGHES: That’s what I loved about the films – the moments that tweak a very personal impression. It’s not even memory.


Sem propósito. Mais, por favor.

gelado #97

Um dos costumeiros ataques da direita à esquerda é a acusação da primeira de que a segunda defende o politicamente correcto. Parece haver um pânico generalizado, no espectro direitista, com a correcção política. Bastaria ter em consideração a volutibilidade da noção "politicamente correcto", que varia conforme os contextos espaço e tempo, para aquele argumento cair que nem dominó num café ali perto da Avenida dos Combatentes onde dois velhinhos se juntam todos os fins de semana a jogar a sua partida por entre imperiais e caracóis e as patroas que se fodam. Mas, fazendo o favor aos reaccionários dos costumes, e no que toca ao assunto casamento homossexual, gostaria de saber o que há de mais politicamente correcto numa sociedade do que o casamento na santa igrejinha, com a noivinha de branco e o esposo de preto, com o Bom Jesus a presidir à união, com os convidados quase todos de roupinha nova e muito bonita (estou-me a rir tanto, inclusive de mim próprio), o almoço com os infernais toques nos pratos e o inevitável leitão, o copo de água onde se enfardam mil comidas e em que se leva ainda alguma para casa, as toneladas de fotografias, o "filme" para recordar, o catastrófico bailarico e o repugnante karaoke, etc. Sim senhor (a), ora aí está uma descrição do subversivo e do underground social, que terror politicamente incorrecto. Em conclusão, este blogue é contra a instituição casamento, hetero ou homossexual, mas como o autor deste blogue nem em nele sabe mandar muito bem, quanto mais nas leis da sociedade, conclui, igualmente, que se tem de haver o santo matrimónio, ele deverá estar aberto a todos, também aos cinéfilos. "Pilar da sociedade". "Valores". Estou-me a rir tanto, a começar por mim.
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